Steven Tshiamala Ndaye está encantado pelos ônibus de Porto Alegre. Natural da República Democrática do Congo, país do centro da África que amarga um dos piores índices de desenvolvimento humano do mundo, o desenvolvedor de software elogia a limpeza, o conforto, o ar-condicionado, o pouco tempo de espera nas paradas. Garante jamais ter aguardado por mais de 20 minutos. Toda vez que enumera as qualidades do serviço que vem motivando protestos de rua desde junho passado, seus interlocutores, com todo tipo de queixa, começam a rir.
- É um dos melhores que já vi - enfatiza o congolês, há meio ano na cidade. - O meu país é pobre, o transporte é meio informal. Você espera uma, duas horas. Se chover, desista. O motorista, proprietário do veículo, pode preferir ficar em casa fazendo outra coisa. O usuário não pode exigir o serviço. Aqui é muito, muito, muito melhor.
Integrante do contingente crescente de estrangeiros que circula pela Capital, Ndaye desvenda uma cidade sem grande apelo turístico que, a três meses da Copa do Mundo, ainda está aprendendo a lidar com visitantes. Ao se instalar como moradores, eles absorvem intensamente o frescor da novidade, enxergando o que muitas vezes os nativos não percebem mais. Valorizam o bom, mas apontam falhas e carências. Falante de francês e tshiluba, o africano de Kinshasa entende pouco o português. Leva no bolso um papel com o nome da rua onde vive, na Auxiliadora, e adora fazer graça com os taxistas: revela ser conterrâneo do Mazembe, time que derrotou o Inter no Mundial de Clubes de 2010, provendo um tema para sustentar a conversa com o eventual colorado ou gremista até o final da corrida.
- Os taxistas são prestativos e educados. Os carros são muito limpos. As pessoas daqui deveriam se sentir privilegiadas por ter táxis tão limpos. Não entendo por que reclamam - diz Ndaye.
Hoje, são 29,5 mil cidadãos de outras nações registrados em Porto Alegre, segundo a Polícia Federal. As duas maiores universidades locais investem cada vez mais em convênios com instituições do Exterior, o que contribui para diversificar os sotaques pelas ruas.
O escocês Neil Philip Craven e o congolês Steven Tshiamala Ndaye
Foto: Omar Freitas
A pedido de Zero Hora, forasteiros compartilharam suas impressões sobre a cidade que completa 242 anos na próxima quarta-feira. Abundaram elogios à arborização e à simpatia e à disponibilidade da população para ajudar. De outro lado, também se mostraram numerosas as críticas à insegurança e à sujeira das vias públicas. Uns exaltam as ciclovias e o respeito dos motoristas a pedestres e ciclistas, outros se espantam e sentem saudade do que deixaram para trás.
- O trânsito é uma loucura. Sempre tenho medo de atravessar a rua. Por sorte, ainda não aconteceu nada - conta o estudante de Educação Física Joel Palma, de Madrid, na Espanha.
A sinalização quase inexistente para quem depende de ônibus surge como o principal aspecto negativo: os pontos não dispõem de mapas e não informam as linhas operantes, os itinerários e os horários. Deslocar-se é uma tarefa custosa.
- Depois de seis meses, ainda fico irritado. Falta organização, especialmente em comparação com a Europa. Acho muito difícil não se perder - afirma o francês Mathieu Liénard-Mayor, estudante de Ciências da Computação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). - Mas as pessoas ajudam muito. Várias vezes, alguém se propôs a me ajudar porque eu parecia perdido. Os brasileiros equilibram a falta de organização com muita boa vontade - completa.
Radicado há quase três anos, o escocês Neil Philip Craven já se relaciona com mais intimidade com Porto Alegre. Mora perto da Redenção e trabalha no Partenon. Adquiriu um carro em janeiro, depois de relutar com o fato de que um coletivo percorre trajetos diferentes na ida e na volta. Surpreende-se: relata existirem quatro linhas que podem levá-lo de casa ao escritório, mas apenas duas disponíveis no sentido contrário.
- Eu usaria mais os ônibus se conseguisse entendê-los. E assim é quase tudo na cidade: os porto-alegrenses sabem como funciona. Se você é daqui, você entende. Mas é difícil começar a entender - define o analista de negócios.
Estudante de português, o chinês Renato Li já enfrentou alguns percalços. Banhava-se na praia do Campeche, em Florianópolis, quando lhe furtaram a mochila, os tênis e outros pertences. No dia seguinte, sumiu o celular, e o ataque de um cachorro estragou o terceiro dia. Mas nada disso comprometeu a positiva imagem do Brasil - as principais qualidades de Porto Alegre, para o jovem, não foram abaladas pelos sustos.
- A cidade é verde, tem muita gente correndo na rua, as pessoas gostam de esporte. Aqui o céu é mais azul - explica Li, habituado à poluição que turva o horizonte na China.
Os mexicanos Diego Emilio Amate Navarro e Ilse López Estudillo
Foto: Carlos Macedo
Para Flavia Thiesen, coordenadora de Mobilidade Acadêmica da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), adotar precauções para evitar a ação de criminosos é a medida mais importante para recém-chegados como Li. Recentemente, ela se surpreendeu ao flagrar um haitiano com US$ 1 mil no bolso.
- Estamos aprendendo a receber. O gaúcho é muito acolhedor, mas a estrutura da cidade é bem complicada, principalmente a mobilidade e a segurança. Orientamos muito os alunos para terem cuidado - comenta.
A bióloga australiana Rae Merrigan também já sofreu com a violência - viu-se forçada a entregar o celular a um homem armado com uma faca, no meio da tarde, e teve a bicicleta levada da garagem do prédio. Passou a ter mais cuidado e não caminha mais sozinha à noite. Em Melbourne, ressalta, não é preciso trancar as portas das residências a chave. Entre os amigos australianos, não conhece ninguém que tenha sido assaltado. Aqui, choca-se com a quantidade de relatos de vítimas de violência entre seus conhecidos:
- Todo mundo tem alguma história para contar. Agora estou mais alerta.
Já o mexicano Diego Emilio Amate Navarro, estudante de cinema, foi vítima de um profissional desonesto. Sem conhecer a geografia local, ele e outros amigos falantes de espanhol precisavam se deslocar da Cidade Baixa ao Menino Deus, bairros vizinhos, num sábado à noite. Tomaram um táxi e rodaram até que o taxímetro alcançasse R$ 50. Desentenderam-se com o condutor, que alegava que a Rua Barão do Guaíba não existia, e acabaram pagando R$ 30 depois de retornar para perto do ponto inicial. Resolveram caminhar - a distância era de apenas quatro quadras.
- Ele sabia que não tínhamos a ideia do lugar onde estávamos. Ficou dando voltas. Tem taxistas que se aproveitam dos outros - lamenta o morador de Celaya.
Como secretário de Relações Internacionais da UFRGS, Nicolas Maillard convive com universitários que enfrentam obstáculos semelhantes durante a adaptação e relembra com frequência o que ele próprio passou, há 12 anos, ao desembarcar por aqui. Pesa vantagens e problemas e conclui, como muitos dos entrevistados para esta reportagem, que a cidade consegue amenizar o impacto de suas deficiências.
- Ainda me encanto, quase toda semana, com a abertura das pessoas, a vontade coletiva de sempre enxergar a metade cheia do copo. As pessoas são simplesmente fantásticas. O bônus do calor humano supera o ônus da infraestrutura. Somando prós e contras, eu me sinto mais feliz na minha vida brasileira do que eu era na minha vida francesa - admite Maillard.
O PIOR DA CIDADE
- Precariedade da sinalização nas ruas e no sistema de transporte público
- Falta de segurança
- Lixo nas vias públicas
- Não cumprimento das leis de trânsito por parte de motoristas e pedestres
- Dificuldades para comunicação em inglês ou espanhol
O MELHOR DA CIDADE
- Simpatia e disponibilidade para ajudar da população
- Ruas arborizadas e parques para lazer
- Atendimento em bares e restaurantes
- Limpeza de ônibus e táxis
- Ciclovias
GUIA DE CONVIVÊNCIA
Para os estrangeiros
- Drible o constrangimento. Aprende-se uma língua praticando-a. É natural cometer erros e, às vezes, não ser entendido pelos falantes nativos. Não desista.
- Observe os habitantes locais e aprenda com os gestos. No Brasil, há muito contato físico e é natural cumprimentar com beijos e abraços.
- Procure ampliar o seu círculo de amizades. Não fique restrito a um grupo de conterrâneos, falando sempre o idioma do país natal.
- Tenha iniciativa. Apresente-se e tente se enturmar.
- Atividades esportivas e de lazer, em clubes e parques, podem ajudar na integração.
Para os locais
- Procure se informar sobre os hábitos e os gostos do estrangeiro. Oferecer um churrasco é uma atitude simpática, mas pode causar constrangimento se o convidado tiver restrições - muçulmanos, por exemplo, não comem carne de porco.
- Prefira indicar os caminhos mais seguros e fáceis, mesmo que não sejam os mais rápidos.
- Quando o interlocutor não domina o idioma, é importante falar devagar e repetir a mesma informação de maneiras diferentes - uma única palavra desconhecida pode comprometer o todo. Escrever pode ajudar. Ao final, pergunte se a explicação foi compreendida.
- É importante ter paciência. Quem está aprendendo uma nova língua demora mais para construir frases e se fazer entender.
- Informe o recém-chegado sobre medidas de segurança, como evitar se deslocar desacompanhado à noite, não andar com muito dinheiro e não expor objetos de valor na rua.
Fontes: Flavia Thiesen, coordenadora de Mobilidade Acadêmica da PUCRS, e Nicolas Maillard, secretário de Relações Internacionais da UFRGS
LONGE DE CASA
Hoje há 29,5 mil estrangeiros registrados em Porto Alegre. Confira a evolução do número de novos registros (temporários e permanentes, de estudo e de trabalho) expedidos ao longo dos últimos anos na cidade
2013 - 2.616
2012 - 1.933
2011 - 1.429
2010 - 1.537
2009 - 1.364
PREDOMÍNIO DE URUGUAIOS
Três dos países com mais representantes na Capital
Uruguai - 4.348
Argentina - 2.742
Portugal - 2.224
Fonte: Polícia Federal
NA UNIVERSIDADE
- Neste primeiro semestre de 2014, a PUCRS tem 75 alunos estrangeiros na graduação e na pós-graduação, matriculados para seis meses ou mais de curso.
- Na UFRGS, são mais de 200 inscritos provenientes de 33 países neste semestre. Em geral, entre 80 e cem chineses chegam à instituição, por ano, para estudar português.
O QUE ELES PENSAM DE PORTO ALEGRE
"Depois de 12 anos em Porto Alegre, ainda me encanto quase toda semana com a abertura das pessoas, o calor humano, a boa vontade, a vontade coletiva de sempre enxergar a metade cheia do copo. As pessoas são simplesmente fantásticas."
Nicolas Bruno Maillard, professor - Nantes, França
"É um dos melhores sistemas de transporte que já vi. O meu país é pobre, o transporte é meio informal. Você espera uma, duas horas na parada. Se chover, desista. O motorista, dono do veículo, pode preferir ficar em casa fazendo outra coisa. O usuário não pode exigir o serviço. Aqui é muito, muito, muito melhor."
Steven Tshiamala Ndaye, desenvolvedor de software - Kinshasa, República Democrática do Congo
"Eu usaria mais os ônibus se conseguisse entendê-los. E assim é quase tudo na cidade: os porto-alegrenses sabem como funciona. Se você é daqui, você entende. Mas é difícil começar a entender."
Neil Philip Craven, analista de negócios - Crieff, Escócia
"Adoro as árvores das ruas. Muitas vezes, paro e fico curtindo. À primeira vista, se você só passa um final de semana, parece não ter muita coisa para fazer, mas tem. É uma cidade grande que parece uma pequena comunidade. Não tem muito estrangeiro, você se sente especial. As pessoas valorizam o fato de eu estar tentando falar a língua local."
Rae Merrigan, bióloga - Melbourne, Austrália
"Pensei que mais gente falaria espanhol, pela proximidade com a Argentina e o Uruguai, mas não. Inglês também não. A comunicação tem sido um problema."
Diego Emilio Amate Navarro, estudante de cinema - Celaya, México
"Não tenho medo de andar na rua. Em comparação com a minha cidade, Porto Alegre, é mais verde, tem mais árvores. Tem muita gente correndo na rua, as pessoas gostam de esporte. Já fui a Floripa, Rio e Foz do Iguaçu, e o gaúcho é o mais simpático de todos."
Renato Li, estudante de português - Suihua, China
"A pior coisa pra mim é o sistema de ônibus. Depois de seis meses, ainda fico irritado. Falta organização, especialmente em comparação com a Europa. Não tem nome nas paradas, não tem a lista dos ônibus parando lá, não tem horários, não tem mapa. Acho muito difícil não se perder. O comportamento de motoristas e pedestres é o mesmo da França: muito ruim. Mas as pessoas ajudam muito. Os brasileiros equilibram a falta de organização com muita boa vontade."
Mathieu Liénard-Mayor, estudante de Informática - Grenoble, França
"As calçadas estão muito estragadas e tenho que olhar sempre para o chão. Andar de bíci é um perigo. Gostaria que houvesse mais ciclovias. Elas são boas, mas tem poucas e sempre cruzam muitas vias. Em Madrid, não tenho que parar por causa dos carros a cada 200 metros. O trânsito é uma loucura. Sempre tenho medo de atravessar a rua. Tem que esperar que o carro passe primeiro, e depois você vai. Por sorte, ainda não aconteceu nada."
Joel Palma, estudante de Educação Física - Madrid, Espanha
"As pessoas são alegres e muito amáveis. Gostam de festa, independentemente da idade."
Ilse Adriana López Estudillo, estudante de nutrição - Celaya, México
"Tudo é muito demorado. O mais horrível é que as paradas de ônibus não têm placas. Tenho que perguntar muito."
Angela Zhang, estudante de português - Kichun, China
"Acho genial o programa BikePoA. Nunca vi algo parecido. Quanto à sinalização, é bem difícil achar uns lugares, mesmo com a ajuda do Google Maps. Também tenho dificuldades para atravessar as ruas. É estranho para mim que muitas pessoas não esperem até que a sinaleira esteja verde e andam antes. Na Alemanha, isso quase não acontece."
Jan-Willem Prügel, estudante de Direito - Heidelberg, Alemanha
"Não imaginava que no Brasil existissem uma cidade e uma gente tão europeias. Tinha a ideia de um país de praias, sol e só pessoas morenas. O ônibus é muito caro, mas é muito bom. No trânsito, não sei se tem algum limite de velocidade, ou, se tem, deve ser muito alto. Os carros sempre vão super-rápido e nunca deixam a o pedestre passar primeiro. Achei estranho que as pessoas vão aos clubes vestidas bem simples, não sei se é pelo medo de ser assaltado caso se arrumem muito ou se é o jeito do brasileiro."
Elí Emanuel Esparza, estudante de Engenharia de Alimentos - Aguascalientes, México
"Lamentavelmente, é uma cidade suja. Não se encontram lixeiras, e as pessoas jogam lixo nas vias públicas. É impactante o cheiro de urina, acredito que por causa da grande quantidade de moradores de rua. Noto pouca presença de policiais nas ruas. Vejo bastante atividade cultural."
Segundo Cordón Feresín, estudante de Agronomia - Córdoba, Argentina
"O transporte público é muito melhor do que no Peru, muito mais seguro. Mas acho que deveria haver mais ônibus. As pessoas estão sempre muito apertadas e é muito caro."
Daniel Enrique Horna Hernández, estudante de Engenharia Ambiental - Trujillo, Peru
"Me surpreenderam a educação e os valores do povo. Assisti a uma manifestação na Avenida João Pessoa, e os manifestantes exigiam melhorias no transporte público. O transporte público aqui é muito bom em comparação com o meu país. Acho estranho e não entendo quando algumas pessoas perguntam por que optei por morar em uma das cidades mais feias do Brasil. É muito bonita, nunca vou me arrepender de tê-la escolhido."
Paola Corona, estudante de Arquitetura - Colima, México
"Acho muito legal morar aqui. O que não gosto é a quantidade de sujeira na rua, acho a cidade muito suja. Faltam lixeiras, mas tem também a falta de educação. O controle social é muito mais alto no meu país. Se você joga uma coisa no chão, alguém vai falar que você não tem educação e que deve pegar o lixo do chão e colocá-lo numa lixeira."
Karen Milou, mestranda em Administração - Haarlem, Holanda