O bageense Glenio Bianchetti se mudou para Brasília em 1961. Já então reconhecido como artista gaúcho, aceitou o convite do antropólogo Darcy Ribeiro (1922 - 1997) e assumiu o desafio de participar da empreitada de criação da Universidade de Brasília (UnB). Não era pouco. A instituição seria fundada em 1962, dois anos após a inauguração da capital federal, com a missão de apresentar um renovador modelo de ensino. Teria áreas de saber interligadas e, como ideal, a transformação do Brasil. Foi o suficiente para entusiasmar uma série de artistas, pesquisadores e intelectuais destacados que para lá se transferiram. Mas, dali a dois anos, viria o golpe militar e, com a ditadura, o desmanche desse projeto inovador para os moldes acadêmicos de então. Professores foram demitidos, presos e perseguidos. Dos que permaneceram, a maioria faria parte em 1965 da histórica demissão coletiva, da qual Glenio participou.
- Nunca vi um período tão negro como aquele - relembra o artista, aos 86 anos, completados na última quarta-feira.
Mesmo afastado da UnB, Glenio resolveu permanecer em Brasília, pois "poderia oferecer uma ótima educação" para os seis filhos pequenos que ele e a mulher, Ailema, levaram para a vida nova no cerrado.
- Precisávamos de uma Kombi na época para transportar toda essa turma - relembra Glenio.
Hoje, o casal mora em uma pequena chácara em Brasília, na região conhecida como Lago Norte, banhada pelo Lago Paranoá e a cerca de 25 quilômetros do centro do poder. Os dois vivem perto dos filhos e dos netos - e de famílias de macacos sagui que aparecem na varanda para comer bananas deixadas pela família. Glenio também montou uma churrasqueira, que diz usar todo domingo, cercada por um mural pintado com os netos. Dentro da casa, suas pinturas dividem espaço com diversas obras, como esculturas dos amigos Vasco Prado (1914 - 1998) e Xico Stockinger (1919 - 2009). No andar superior, mantém o ateliê onde costuma trabalhar à noite ao lado da mulher, que se dedica ao artesanato. Em dezembro, eles abriram o espaço para visitantes com a já tradicional exposição de fim de ano.
Antes de Glenio começar a etapa da vida em Brasília, já havia feito história no Sul. Decidido a ser artista, deixou Bagé e se mudou para Porto Alegre, onde estudou no então Instituto de Belas Artes (hoje Instituto de Artes da UFRGS). Lá, foi iniciado por mestres como os artistas e professores Alice Soares, Cristina Balbão, Fernando Corona e Ado Malagoli. Mas o conservadorismo do ambiente acadêmico da escola de artes, que se mantinha imune às influências das vanguardas nacionais e internacionais, logo levaria Glenio a se juntar a outros artistas decididos a romper com o academicismo e aderir à então revolucionária arte moderna.
Foi assim que entrou no Clube de Gravura de Porto Alegre, que Carlos Scliar (1920 - 2001) e Vasco Prado fundaram em 1950, após contato com o gravurista mexicano Leopoldo Mendez em Paris. No ano seguinte, Glenio, Danúbio Gonçalves e Glauco Rodrigues (1929 - 2004) - "Os novos de Bagé", como ficariam conhecidos - criaram o Clube de Gravura de Bagé. Em comum, os integrantes dos grupos de gravura eram artistas de orientação esquerdista e produção de matriz moderna, daí as aproximações com o realismo socialista e o muralismo mexicano. Esses gaúchos adotaram uma arte figurativa com teor de denúncia social - voltada à figura do gaúcho e à rudeza do trabalho no campo -, em detrimento à arte abstrata, então em voga no cenário internacional e ganhando força no Brasil com a 1ª Bienal de São Paulo, em 1951.
Confira a entrevista
"Tenho uma saudade lírica e toda especial de Porto Alegre"
Cultura - Como o senhor se sente ao fazer parte de uma geração fundamental para a arte moderna no Rio Grande do Sul nos anos 1940 e 1950, período em que predominava certo conservadorismo?
Glenio Bianchetti - Sinto falta desse convívio com os companheiros. Era um convívio muito sadio, muito bom. Nos clubes de gravura, fizemos uma espécie de família, reuníamos muita gente, de várias áreas. Estávamos entre poetas, pintores, músicos, teatrólogos... Vivíamos o tempo inteiro trabalhando, discutindo, lendo, em contato uns com os outros, sendo estimulados. Sabíamos o que estava acontecendo em São Paulo e no resto do Brasil. Esse ambiente de troca de ideias e críticas foi fundamental, porque nosso meio de conhecimento estava entre nós mesmos. Fazíamos as maiores críticas uns para os outros: "Vem cá, meu filho, tu tá saindo do ritmo, entrando em outra coisa". Eram críticas pesadas, mas nunca ninguém teve ressentimentos. Cada um aceitava a crítica, discutia coletivamente. Foi muito bom. Aprendemos mais no ateliê do que na escola de artes. Foram clubes de amigos. Nosso grupo todo era "duro". O pouquinho de dinheiro que cada um tinha, a gente reunia para o aluguel de uma casa para nós, onde pudéssemos fazer um ateliê coletivo. Na verdade, me dá uma certa angústia. Essa geração nova não me conhece pessoalmente, só de nome. E minha geração quase toda já morreu, é uma coisa impressionante. Fulano? Morreu. E fulano? Morreu. Tem eu e o Danúbio (Gonçalves). Vou ao Sul e fico um tanto chateado, por me sentir desarvorado e também quase anônimo.
Cultura - Quando o Clube de Bagé foi formado, em 1951, o senhor, Danúbio Gonçalves e Glauco Rodrigues já haviam deixado o Interior para estudar arte em Porto Alegre, em outras capitais e até mesmo na Europa. Como se deu esse retorno?
Bianchetti - Eu estudava no Instituto de Belas Artes em Porto Alegre, mas Bagé era uma espécie de mania. Danúbio e Glauco eram de Bagé também, e juntos começamos o Clube de Gravura na cidade. Depois, veio o Carlos Scliar, que era de Santa Maria, mas tinha "cidadania" bageense, pois se considerava um sujeito de Bagé. Uma pessoa fundamental foi Pedro Wayne (escritor, jornalista e agitador cultural de Bagé). A família tinha uma biblioteca fantástica, toda a literatura francesa, e nos dava acesso, foi fantástico. Era um patrimônio cultural à nossa disposição. O convívio com os Wayne foi uma sorte nossa. Em Bagé, a gente tinha acesso a mais conhecimento que em Porto Alegre, acredite.
Cultura - Por que o grupo adotou a temática regionalista?
Bianchetti - Tive uma infância rural, convivíamos muito com o regionalismo. Fiz séries de gravuras só com as memórias do que vivi. Lembro ainda hoje de detalhes da indumentária do gaúcho, dos costumes, porque eram coisas que a gente vivia. O Danúbio, digamos, adaptou, porque ele não viveu isso (risos). Ele veio para o grupo já maduro, pois tinha vivido no Rio, onde foi criado pela irmã e estudou arte com Portinari, e voltado da Europa. Ele tinha um tipo de vida que eu e Glauco não tivemos, pois éramos mais regionais.
Cultura - Além de se voltar às condições sociais do trabalhador gaúcho no campo, vocês dos clubes de gravuras também optaram pela arte figurativa. Havia uma postura ideológica contrária à arte abstrata?
Bianchetti - Todos nós éramos figurativos. A gente não fazia arte abstrata porque havíamos tomado consciência da nossa posição ideológica. A figuração vinha da consciência de nosso papel na sociedade e do fato de que nunca deixamos de estar a par dos caminhos que o Brasil ia tomando. Politicamente, tínhamos uma posição firme, íamos para a rua gritar. Na parte formal, tivemos um orientador, o professor José Moraes, que trabalhou com Portinari e nos passou todo um modo de trabalhar. Isso nos deu disciplina. Hoje, vejo meus netos patinando para aprender, pois estão tomando consciência de que saber desenhar é fundamental para o aprendizado de pintura. Se eles quiserem fazer arte conceitual, que façam, mas é preciso saber desenhar para pintar. E isso todos nós dos clubes de gravura tínhamos.
Cultura - Como foi sua passagem pelo Instituto de Belas Artes?
Bianchetti - Acadêmico ou não, foi onde viram que eu tinha um pouco de talento e me estimulavam. (Os professores) Alice Soares, Cristina Balbão e Fernando Corona foram os que me deram apoio. Corona era da diretoria do Instituto de Belas Artes, que, naquela época, era bem arrumadinho, conforme manda o figurino. Hoje me contam que está em decadência. Quando cheguei a Porto Alegre, completamente "duro", custava caro para fazer modelo vivo. Um dia, o Corona, que frequentava todos os ateliês para ver quem eram os alunos bons, trouxe uma chave e me disse: "Pode usar o meu ateliê, eu já encomendei o modelo". Eu fiquei estatelado, ele estava pagando o modelo do bolso dele, não do instituto. Eu disse: "O senhor está me dando o que meu pai não pode me dar".
Cultura - Da vida cultural em Porto Alegre nos anos 1940 e 1950, o que lhe marcou?
Bianchetti - Tenho uma saudade lírica e toda especial de Porto Alegre. Eu adoro, mais que minha cidade, Bagé. Foi em Porto Alegre que me defini intelectualmente. E acho que consegui viver e contribuir de certa maneira. Era um jovem apimentado, meio violento. E, em Porto Alegre, aconteciam umas coisas incríveis naquele período em que tudo era precário. Tinha o auditório do Correio do Povo e todo o pessoal da redação, P.F. Gastal, Carlos Reverbel, Oswaldo Goidanich, Aldo Obino. Era não só um grupo de jornalistas, mas de gente que fazia alguma coisa pela cultura e vivia lutando para Porto Alegre ter algo realmente novo, moderno. A imprensa nos dava uma cobertura fantástica. Todos os grupos que atuavam em Porto Alegre faziam muitas coisas. Me lembro do Bode Preto, do Quixote, havia vários grupos de que não tenho memória agora. Naquele tempo, a gente conseguia balançar as coisas, dar um certo nível cultural. Fazíamos exposições, cobrávamos postura e iniciativa dos outros, dos grupos e até do pessoal do Instituto de Belas Artes, que era meio reacionário. Lembro de forma especial também do Guilhermino César (escritor, historiador e professor) e do Erico Verissimo, que era meu amigo do peito. O filho dele, o Luis Fernando, foi meu aluno de desenho.
Cultura - O que o levou a se mudar para Brasília?
Bianchetti - A gente veio para cá achando que, com a UnB, estaríamos participando de uma nova etapa do país. Brasília me representava, naquele estágio da vida, um novo caminho para um novo Brasil. Eu sonhava com isso, tinha um ideal, essa ideia maluca de que Brasília seria a redenção do país. Quando chegamos, em 1961, ainda era um canteiro de obras, mas sabíamos que algo estava nascendo. Com o convite do Darcy Ribeiro, esperava que a universidade fosse um projeto para toda a vida. Coloquei em prática um plano que ia tornar o Departamento de Artes independente, economicamente inclusive. Organizei seis ateliês diferentes, cada um dentro de uma técnica. Pretendíamos vender obras para manter os ateliês e convidar grandes gravadores brasileiros para fazer séries. Mas aí veio a revolução militar e acabou com tudo.
Cultura - Como foi sua prisão?
Bianchetti - Fui um dos primeiros professores da UnB a ser preso em 1964, 15 dias depois do golpe. Mandaram uma lista com os nomes que deviam se apresentar, e fomos presos na universidade. Saí de casa com a família sabendo que eu seria preso. Fiquei 27 dias detido pela revolução com mais outros professores. Depois nos soltaram e fomos readmitidos. Mas a perseguição continuou. E, em 1965, numa mesma tarde, eu e dezenas de professores pedimos demissão. Pensei: "Fico sem emprego, mas vou lutar". Vivi 20 anos perseguido e boicotado, mas nunca deixei de ter posição contrária à revolução. Mas não tive filiação partidária, ao contrário de vários amigos meus militantes do Partido Comunista, como Carlos Scliar.
Cultura - O senhor conheceu o presidente Juscelino Kubitschek?
Bianchetti - Tive uma relação muito boa com ele, especialmente quando já estava cassado. Um dia, Juscelino me convidou para ir à casa dele no Rio. E foi engraçado. Ele estava de terno, gravata e só de meia. Não era partidário dele, porque ele era um sabonete, mas o admirava.
Cultura - E Oscar Niemeyer e Lucio Costa, responsáveis pelo projeto arquitetônico de Brasília?
Bianchetti - Conheci os dois, mas eu não gostava muito do Oscar. Politicamente, era outro sabonete, só que diferente. Se dizia socialista, que era membro do PC, fazia todo um alarde... E não era nada disso. Ele veio de uma família riquíssima do Rio e não trabalhava de graça. Essa coisa já me desencantava.
Cultura - Como morador de Brasília há mais de 50 anos, qual é sua visão dos políticos brasileiros?
Bianchetti - Os políticos são essa raça triste. Fico com raiva porque meus amigos que foram militantes comunistas hoje estão no PSDB. Digo: "Meu Deus, o que é isso, todo mundo muda de partido, de ideia...". Hoje a gente não pode falar de direita, centro, esquerda. Está tudo misturado, e as pessoas se vendem muito facilmente, conforme o preço. É um raça prostituída, isso me dá agonia. Acho errado ter lutado a vida inteira para termos um país decente, direito, e ver isso. As coisas estão inacreditáveis.