A azão para muitas crianças viverem na rua costuma ficar dentro de casa. A ausência da figura paterna, conflitos domésticos ou a negligência dos responsáveis respondem pela maior parte dos meninos e meninas que perambulam pelas calçadas do Estado. Um estudo acadêmico demonstra que um jovem que se desliga da família enfrenta um risco 32 vezes maior de resvalar para o vício do crack na Capital.
No domingo passado, Zero Hora publicou em um caderno especial a história de Felipe, 14 anos, que teve na desestruturação familiar provocada pela ausência paterna uma das razões para a vida na rua. Esse problema é comum a boa parte das crianças e adolescentes que seguem o mesmo caminho.
- A ausência do pai, ou quando ele está presente mas não se envolve, é complicada porque deixa de existir um modelo masculino, e fica difícil para a mãe trabalhar e controlar os filhos. Como dizem que é o olho do dono que engorda o boi, é o olho dos pais que educa as crianças - observa a psicóloga Marli Sattler.
Veja o vídeo sobre a trajetória errante de Felipe
Os números confirmam essa constatação. Quase 40% dos adolescentes internados na Fundação de Atendimento Socioeducativo do Estado (Fase), conforme levantamento de 2007, viveram afastados do pai. Dos 657 internos à época, 16% nem sequer tinham o nome do pai na cédula de identidade, e outros 21,4% não puderam conviver todo o tempo com os genitores porque os responsáveis cumpriam pena por algum delito.
A estatística não contempla, porém, os casos de maus-tratos ou abandono afetivo, que também minam a autoestima infantil e podem favorecer o consumo de drogas e a troca da casa pela vida ao relento. Conforme o psicólogo Lucas Neiva-Silva, falhas de relacionamento dos pais com os filhos, mesmo em famílias completas, podem estimular o uso de drogas e a fuga (veja quadro).
- Excesso de autoridade sem afeto, ou falta de limites, mesmo com carinho, podem resultar em problemas - diz o psicólogo, autor de estudo demonstrando que o desligamento da família aumenta em 32 vezes o risco de meninos e meninas usarem crack.
A INFLUÊNCIA DOS "ESTILOS PARENTAIS"
Confira os quatro principais padrões de comportamento dos pais em relação aos filhos - muitas vezes, o pai pode apresentar um estilo, e a mãe, outro - e possíveis consequências na vida das crianças:
Autoritativo (ou "com autoridade")
Descrição: estilo que resulta da combinação entre alta exigência em relação ao comportamento dos filhos, mas também grande afetividade. Pais com esse tipo de comportamento estabelecem regras de conduta que são enfatizadas de maneira consistente. Monitoram o que os filhos fazem, corrigem atitudes negativas e gratificam atitudes positivas. Há comunicação clara e aberta entre pais e filhos, com respeito mútuo. São afetuosos na interação com os filhos e, seguidamente, pedem a opinião deles e encorajam a tomada de decisões, proporcionando oportunidades para que desenvolvam suas habilidades.
Possíveis impactos na vida dos filhos:
- Motivação para realização
- Cooperação e amizade
- Maior autoestima e independência
- Menor hostilidade e agressividade
- Baixos índices de problemas de comportamento
Autoritário
Descrição: estilo decorrente de altos níveis de controle sobre os filhos, mas baixa afetividade. Os pais com esse padrão costumam ser rígidos em excesso. Impõem altos níveis de exigência, com regras estritas, sem participação da criança. Enfatizam a obediência por meio do respeito à autoridade e à ordem. Com frequência, utilizam a punição como forma de controle do comportamento. Não valorizam o diálogo ou a autonomia do filho. Não valorizam os questionamentos e opiniões da criança. Em caso de agressão física, pode levar o filho a fugir de casa e ir para a rua.
Possíveis impactos na vida dos filhos:
- Menor autoestima
- Maior hostilidade
- Medo e frustração
- Maiores índices de ansiedade e depressão
- Maior insegurança em relação a situações de interação social
Indulgente
Descrição: combinam baixo controle e alta afetividade. Em oposição aos pais autoritários, não costumam estabelecer regras ou limites para a criança, apresentando poucas demandas de responsabilidade e maturidade. São tolerantes em excesso, permitindo que a criança monitore o seu próprio comportamento. São afetivos, comunicativos e receptivos com os filhos, com tendência a satisfazer qualquer demanda que a criança apresente.
Possíveis impactos na vida dos filhos:
- Bons índices de autoestima, mas maior imaturidade
- Pouco envolvimento em atividades escolares
- Maior agressividade
- Impulsividade
- Altos índices de problemas de comportamento
Negligente
Descrição: combinação de pouco controle e pouca afetividade em relação aos filhos. Pais negligentes demonstram pouco envolvimento com a tarefa de socialização da criança, não monitorando o seu comportamento. Tendem a manter seus filhos à distância, respondendo somente às suas necessidades básicas. Enquanto os pais indulgentes se envolvem com seus filhos, embora com excesso de tolerância, os negligentes estão com frequência centrados em seus próprios interesses.
Possíveis impactos na vida dos filhos:
- Baixos índices de competência social
- Baixos índices de competência cognitiva
- Alto índice de problemas de comportamento
- Os efeitos prejudiciais da criação negligente acumulam-se com o tempo