Três medalhas de ouro. Por trás do maior escândalo recente de doping no esporte mundial, estão três primeiros lugares – três míseros ouros, na visão da Rússia. Foi o fraco desempenho em Vancouver, na Olimpíada de Inverno de 2010, que fez com que fosse arquitetado um megaesquema para recuperar a imagem de um dos países mais vitoriosos na história dos Jogos.
Sede do evento quatro anos depois, em Sochi, a Rússia precisava evitar o vexame apresentado no Canadá, quando ficou apenas com a 11ª colocação no quadro de medalhas, no seu pior desempenho em uma Olimpíada. O método encontrado envolveu o Ministério do Esporte, o Serviço Federal de Segurança (FSB, que sucedeu a KGB dos tempos de União Soviética) e o Centro de Preparação Esportiva Nacional (CSP) russo, todos envolvidos na entrega de substâncias proibidas aos atletas e, depois, no trabalho de alterar ou desaparecer com as provas e resultados dos exames antidoping.
Leia mais:
André Baibich: o impacto da exclusão da Rússia no quadro de medalhas
Os 10 principais nomes do atletismo russo que ficarão fora do Rio 2016
Como os atletas russos podem competir sob bandeira olímpica
Rio vive clima de frustração às vésperas da Olimpíada
O esquema foi revelado pelo médico Grigory Rodchenkov, diretor do laboratório antidoping de Moscou entre 2005 e 2015. Após analisar o caso, a Agência Mundial Antidoping (Wada) confirmou, na última segunda-feira, em relatório conduzido pelo advogado canadense Richard McLaren, as revelações feitas por Rodchenkov. McLaren encontrou provas de alterações em exames de atletas russos de 28 esportes – 22 deles presentes no Rio 2016.
A equipe de atletismo do país foi proibida de vir ao Brasil, autoridades já pediram o banimento completo de atletas russos dos Jogos, e o Comitê Olímpico Internacional (COI) deve se pronunciar nos próximos dias sobre o caso.
A participação de esferas tão altas de governo em entidades olímpicas pode parecer incomum à primeira vista –e é algo condenado no artigo 50 do capítulo 5 da Carta Olímpica, que proíbe qualquer "tipo de demonstração ou propaganda política, religiosa ou racial" nos Jogos." Mas a própria história da competição mostra que, em vez de exceção, é quase regra o uso do esporte para fins políticos. Inclusive com outros casos de doping.
Glória à base de esteroides
A estratégia russa não foi o primeiro caso em que um governo interfere para projetar o país nos Jogos. Entre 1960 e 1980, a então Alemanha Oriental dopou sistematicamente mais de 15 mil atletas, em um processo, chamado Plano Tema de Estado 14-25, que começava desde a adolescência. A iniciativa teve, quase sempre, resultados incríveis nas pistas, piscinas e quadras, e desastroso para a vida dos atletas ao fim de suas carreiras.
As estruturas esportivas alemãs eram 100% controladas pelo governo comunista. Cada clube tinha uma escola esportiva para crianças, que identificava os talentos e aptidões de cada jovem. Aqueles que tinham os melhores resultados eram "premiados" pelas autoridades, passando a ganhar, com apenas 12 ou 13 anos, "vitaminas e preparos especiais" dos técnicos – na verdade, um esteroide anabolizante com alta concentração de testosterona.
Assim, a musculatura se desenvolvia rápido, o tempo de recuperação entre as provas era curto, e o número de medalhas e vitórias crescia. Em 1968, a Alemanha Oriental ficou em quinto lugar, com nove ouros. Quatro anos depois, foram 20 medalhas douradas e o terceiro lugar – à frente da coirmã capitalista, que sediava o evento.
O número de primeiros lugares dobrou em 1976, com o país ficando atrás só da União Soviética – resultado que se repetiria em 1988 – após as duas edições marcadas por boicotes soviéticos e americanos.
Um dos símbolos do uso compulsivo de esteroides à base de testosterona foi Heidi Krieger. Dopada desde os 11 anos, ele foi ouro nos Jogos Europeus de 1986, aos 21 anos. Não disputou a Olimpíada de 1988 e se aposentou em 1990, com apenas 25 anos, sofrendo com dores nos quadris e nas coxas. O seu nível de testosterona era 37 vezes maior do que o de uma mulher da mesma idade.
Hoje, inclusive, ela não existe mais. Com características cada vez mais masculinas e sofrendo de depressão, Heidi decidiu virar Andreas em 1997. Fez uma cirurgia para mudança de sexo e passou a viver como homem.
– Eles mataram Heidi. Eu fui tirado do meu gênero – diz Andreas, referindo-se ao governo alemão oriental.
A serviço do nazismo
Em 1936, a primeira Olimpíada na Alemanha foi cenário para Adolf Hitler propagar a superioridade racial dos arianos. Todo o aparato de poder do nazismo foi usado para isso, desde o revezamento da Tocha até a documentação dos Jogos em vídeo. Nas arquibancadas, Hitler acompanhava as principais provas de perto, com o estandarte nazista nos estádios e arenas. População e atletas faziam o "Heil, Hitler!", em saudação ao ditador.
Após cogitar um boicote, a deleção dos Estados Unidos viajou a Berlim com só dois atletas judeus: Sam Stoller e Marty Glickman, do revezamento 4x100m, mas eles foram tirados do time que conquistou o ouro. O grande destaque, porém, foi o domínio do negro Jesse Owens, que levou quatro ouros e superou o astro local Luz Long no salto em distância, constrangendo Hitler na sua própria casa.
Com a marca do terror
Em Munique, a edição de 1972 corria bem até a segunda semana. No dia 5 de setembro, porém, oito terroristas da organização palestina Setembro Negro escalaram o muro da Vila Olímpica usando uniformes e entraram nos apartamentos da delegação de Israel. Armados com fuzis, pistolas e granadas, eles renderam 11 dos 14 atletas israelenses e mataram dois logo no início do sequestro.
O Setembro Negro pedia a libertação de 234 palestinos presos em Israel, além de dois terroristas alemães detidos na Alemanha Ocidental. As negociações avançaram até as autoridades alemãs levarem o grupo de terroristas e reféns ao aeroporto, onde eles fugiriam para o Egito. A operação de resgate, porém, falhou. Os nove israelenses e cinco dos oito terroristas foram assassinados.
Após 30 horas de paralisação, os Jogos prosseguiram. Uma cerimônia homenageou os atletas mortos no dia 6. E mesmo aí a política se fez presente: as bandeiras de todos os países participantes ficaram a meio mastro, mas 10 nações árabes criticaram a decisão de honrar israelenses, e suas bandeiras logo foram erguidas totalmente.
Tensão na Guerra Fria
Muitas vezes, os Jogos serviam como disputa de força internacional. A maior rivalidade foi entre Estados Unidos e União Soviética durante a Guerra Fria, o que resultou em dois grandes boicotes. Após exigir sem sucesso que a União Soviética desocupasse o Afeganistão, invadido em dezembro do ano anterior, os Estados Unidos lideraram um grupo de 65 países – incluindo Alemanha Ocidental, Japão, Argentina, Uruguai e Chile, mas não o Brasil – a não disputar a Olimpíada de 1980, em Moscou.
A resposta comunista veio quatro anos mais tarde. Em 1984, 15 países sob influência soviética – incluindo Cuba – se ausentaram dos Jogos de Los Angeles. A alegação da URSS foi de que não havia segurança para os seus atletas,, além de criticarem o que chamaram de "mercantilização" da competição por parte do comitê organizador.
Racismo e divergências
Diversos blocos de países boicotaram outras edições olímpicas por questões políticas. Excluída dos Jogos entre 1960 e 1992 por conta da política de descriminação racial do Apartheid, a África do Sul teve influência direta na ausência de 28 países africanos e asiáticos na edição de 1976, em Montreal. A delegação do Congo havia pedido a punição da Nova Zelândia após a seleção de rúgbi do país fazer uma turnê em terras sul-africanas no mesmo ano. O COI não aceitou o pedido, e os africanos deixaram a competição logo após o primeiro dia do evento.
Já em 1988, em Seul, a Coreia do Norte decidiu boicotar a Olimpíada. Os norte-coreanos exigiram – e não levaram – do COI que 11 dos 23 esportes fossem disputados no país. Cuba, Nicarágua, Etiópia e Madagascar aderiram à causa e não participaram dos Jogos.
*ZHESPORTES