Rodrigo Crivellaro Dias da Costa soprou o apito 81 vezes na partida entre Avenida e Pelotas, válida pela terceira rodada da Série A-2. Destas, quatro foram para começar e terminar cada tempo. Trinta e três, para assinalar faltas, sendo um pênalti. Mais quatro, para indicar começos e finais de paradas técnicas devido ao calor. Em 98 minutos de jogo, o Estádio dos Eucaliptos, em Santa Cruz do Sul, ouviu bem mais "Joga!", "Vamos lá, goleiro!", "Dá espaço, dá espaço!" do que o estridente trilar do assopro. O comportamento discreto e a tranquilidade, que lhe conferem o inusitado apelido de Soneca, deixam ainda mais inexplicável a agressão que ele sofreu há seis meses. O chute na cabeça desferido por Willian Ribeiro, então jogador do São Paulo-RG, quando estava já deitado no chão, esteve perto de lhe tirar os movimentos ou inclusive de provocar coisa pior. O primeiro assopro, para indicar um minuto de silêncio, poderia ter sido em sua memória.
A atuação que teve no retorno ao futebol foi bem semelhante àquela na fatídica noite de 4 de outubro de 2021. Eram 23 minutos do segundo tempo de um confronto absolutamente normal entre Guarani-VA 1x0 São Paulo-RG, no Estádio Edmundo Feix, em Venâncio Aires. Foi quando o camisa 10 do time rio-grandino lhe empurrou. O juiz caiu. No chão, de costas, levou um chute na nuca. Desmaiou. Jogadores das duas equipes imediatamente pediram a entrada da ambulância, que transportou o árbitro ao Hospital São Sebastião Mártir. Lá, recobrou a consciência e ficou em observação. O golpe lhe causou uma lesão ligamentar na vértebra C6. Por sorte, não foi necessária cirurgia. Mas teve de usar colete cervical, realizar exames semanais e ficou 90 dias impossibilitado não só de apitar mas também de realizar atividades físicas. Mais um problema: sua atividade profissional era ser personal trainer.
Foram três meses em casa. Recebeu apoio do sindicato dos árbitros, da Federação Gaúcha e de vários colegas de apito, como Carlos Simon, Leandro Vuaden, Anderson Daronco, Leonardo Gaciba (então na CBF). Suas redes sociais explodiram de mensagens de torcedores, dirigentes, atletas. Uma rede de carinho e solidariedade se formou.
Essa corrente se juntou à família. Maiara Horn Danek, 29 anos, teve de se dividir entre cuidar do marido e do (nem tão) pequeno Alexandre, um gurizão loiro e forte, cheio de energia, hoje com um ano e oito meses. A mãe de Rodrigo, Silvana, e a sogra, Mirtes, foram ajudá-los. Nesse período, Maiara engravidou novamente, e Antônia é esperada para julho.
Rodrigo precisou se reinventar. Passados os 90 dias, como ainda não podia apitar, voltou a investir na vida de educador físico. Reencontrou o padel, uma de suas paixões. Ex-integrante da seleção brasileira da modalidade, voltou a empunhar a raquete e virou instrutor. Usa as redes sociais para divulgar seus vídeos, com dicas do esporte. Em Santa Maria, não há quem não conheça o Soneca Padel.
Mas sua carreira não podia ser restrita ao padel. Ou a tentar melhorar a forma e dar mais saúde aos alunos nas aulas particulares. Em nenhum dos 90 dias com colete cervical, nem no hospital, nem recuperado, nem revendo as cenas, pensou em largar o apito.
— Quem é árbitro tem de gostar muito. Não é fácil. Por isso e também por respeito a todas as pessoas que me motivaram a voltar, não poderia pensar em parar. Preciso mostrar que qualquer um pode dar a volta por cima em qualquer situação — explica.
Essa decisão, por mais paradoxal que possa parecer, encontrou unanimidade em casa. Maiara apoiou o marido. A sogra, idem. Até a mãe, figura tão frequente nos gogós de torcedores em arquibancadas do mundo inteiro, queria ver o filho de volta.
— Não era eu quem ia dizer para não apitar, né? Ele gosta disso, sabe fazer. A mim, cabe estimular — completa Silvana.
Não é apenas opinião de mãe coruja. Rodrigo sabe apitar. Com 30 anos recém completados, é um dos árbitros promissores do quadro gaúcho. Formou-se na turma de 2015 e teve a melhor nota das provas (e que lhe rendeu, como prêmio, uma camiseta especial, que foi colocada em um quadro e pendurada na parede de sua casa). Trabalhou dois anos nas categorias de base e subiu para as divisões de acesso. Estava pronto para tentar uma vaga no Gauchão quando foi atacado.
Passado o período de ausência, voltou à ativa. Ficou em casa, estudou, atualizou-se. Comandou uns jogos na várzea. Enquanto isso, fez as provas. No primeiro teste físico, não conseguiu passar. Afinal, não havia treinado. No novo teste, foi aprovado.
Seu nome voltou a aparecer nas escalas. Na estreia da Série A-2, foi quarto árbitro. Na terceira rodada, estava escalado como juiz principal, para o jogo de quarta-feira passada. Foi de Santa Maria a Santa Cruz do Sul de carona os bandeiras Haury Temp e Rodrigo Dahmer, mais o quarto árbitro Tiago Lucas Rodrigues. Passava das 11h quando a camionete parou em frente ao condomínio onde mora para levá-lo aos Eucaliptos. Sem que Rodrigo soubesse, sua família sairia do mesmo local duas horas depois.
O quarteto de arbitragem desembarcou na casa do Avenida pouco depois das 13h. Eles foram recepcionados por dirigentes do clube. Debaixo de um solaço, entraram no campo e desviaram do sistema de irrigação que refrescava a grama e formava arco-íris, enquanto vistoriavam as condições das traves, a colocação das redes, as marcações. Foram para o vestiário. Câmeras apontavam para os quatro. Aos poucos, a torcida chegava para acompanhar o jogo.
No vestiário, conversaram, visualizaram possíveis cenários e ingressaram no gramado. Atletas e técnicos das duas equipes foram cumprimentá-lo. Dois deles, o zagueiro Marcão e o técnico Rodrigo Bandeira, ambos do Avenida, estavam em campo na noite do ataque.
Com 14 minutos do primeiro tempo, Rodrigo Crivellaro estava a três metros do local onde o atacante Jarro, do Pelotas, foi derrubado, já dentro da área. Assinalou o pênalti. Seu posicionamento e a clareza da falta impediram que houvesse pressão. A cobrança foi defendida pelo goleiro Rodrigo, do Avenida. Em nenhum momento ele foi cercado em suas marcações. Conduziu a partida mais na base da conversa e das orientações. Duas vezes interrompeu confusões entre jogadores, aplicando cartões. Reclamações ficaram sempre dentro do tom do futebol. Da arquibancada, apenas uma vez veio o grito "Vais apanhar de novo, hein!". Sua família já havia chegado, mas a essa altura, elas já estão acostumadas à pressão da torcida. O Avenida lhe homenageou com uma cuca e uma carta de boas-vindas. No apito final, os sete brigadianos destacados para a segurança do quarteto de arbitragem não tiveram trabalho.
Então Maiara (e Antônia), Alexandre, Silvana e Mirtes entraram no campo. Rodrigo, mesmo com a cara de soneca, ficou emocionado. Abraços, beijos, troca de passes com o filho e comoção de quem viu a cena. O árbitro está em paz. Para chegar até esse nível, teve apoio também na espiritualidade. Já reviu a cena da agressão algumas vezes, e segue sem lembrar do que passou segundos antes da pancada até acordar no hospital. Tampouco entende a razão para tamanha fúria de Willian, com quem nunca mais falou, a não ser em audiências da justiça. Gostaria que o atleta tivesse ao menos demonstrado, em algum momento, do que fez. Mas embora discorde da punição de dois anos de suspensão do futebol, garante que é possível perdoar o agressor. Até para virar a página e seguir fazendo seu trabalho, primeiro rumo ao primeiro time da FGF, que permite apitar o Gauchão, e, quem sabe, um dia endossar um distintivo da Fifa:
— Deus sabe o que coloca no nosso caminho. Até para o meu próprio bem. Não sei o que faria se ele estivesse na minha frente, mas, sim, tudo na vida é perdoável. Isso também ajuda a dar algum jeito de seguir o caminho.