Considera-se fenômeno tudo aquilo que não é comum e que pode surpreender. Não poderia haver apelido melhor para Ronaldo Nazário. Quase tudo que ele fez e faz no futebol assombrou, inclusive o seu ato mais recente. Desde sábado (18), o ex-jogador adquiriu 90% da SAF (Sociedade Anônima do Futebol) do Cruzeiro, clube onde se profissionalizou. Assim o ex-atacante se transformou no primeiro dono de um dos grandes clubes do futebol brasileiro.
A transformação de um clube associativo para clube-empresa ainda é um ambiente nebuloso, com mais incógnitas do que certezas. O Botafogo apresenta-se como forte candidato a ser o próximo a seguir este caminho. Os cariocas vislumbram negociar 100% das ações de sua SAF. Os moldes com que este tipo de negócio pode ser selado são variados.
No caso do Cruzeiro, Ronaldo despejará R$ 400 milhões na SAF cruzeirense pelo período de cinco anos. O clube civil terá seis anos para quitar 60% da dívida de quase R$ 1 bilhão adquirida durante sua história — o empresário se torna um devedor solidário. Atingindo a meta, terá mais quatro anos para quitar o restante. Para se manter, a Associação terá direito a 20% das receitas e 50% dos dividendos da SAF.
Especialistas acreditam que o novo modelo se encaixe melhor em clubes superendividados. Equipes com boa saúde financeira ou que já possuem um investidor abonado tendem a evitar esse cenário incerto.
O cerne de tudo será como a gestão do clube-empresa será realizada. Há um leque de possibilidades. A modificação mais sensível para o torcedor é que ele passará a ter menor participação nas decisões. A SAF passa a ser gerida como uma empresa, o que garante a continuidade do projeto através da manutenção do presidente. A figura do dirigente político tende a desaparecer.
— O clube passa a estar mais capacitado para se planejar. Quem toma as decisões vai ficar por três, cinco, dez anos. Esse é o grande ganho. É preciso ter cuidado para não mudar o controle e manter as pessoas. É preciso trazer gente nova — argumenta Cesar Grafietti, especialista em gestão e finanças do futebol brasileiro e consultor do Itaú BBA.
Modelos de gestão
Existem dois grandes modelos de gestão. O primeiro, adotado principalmente por clubes de menor expressão da Europa, de apostar na formação de jogadores e na compra de promessas, e a partir da venda desses jogadores gerar lucro. O que poderia ser um problema para as grandes equipes brasileiras de cair na mão de um dono sem ambições esportivas.
O outro é ver o clube como uma oportunidade de negócio. Nesse cenário, o investidor compra as ações em um período de baixa, reestrutura a equipe para, no futuro, vender sua participação por valores mais elevados. O objetivo do comprador também pode ser desvinculado do esporte, como melhorar a sua imagem perante o público ou impulsionar ambições políticas.
Ronaldo também é proprietário do Valladolid, da Espanha, o que abre a possibilidade de criar um conglomerado de clubes em que um ampara outro. Esse tipo de gestão tem como exemplos notáveis a Red Bull e o Grupo City, dono do Manchester City.
Há ainda um modelo raro, mas chamativo. São bilionários que investem sem limites nos clubes, como ocorre no Chelsea, no Paris Saint-Germain e no City.
Depois de vendido pela primeira vez, o clube pode ficar de mãos atadas dependendo do previsto em acordo. Há a chance de ficar sem ter o que fazer caso seja mal administrado ou de impedir uma futura administração com interesses escusos.
— No modelo privado não tem como tirar o clube das mãos do dono. Virar empresa não faz a administração melhor e o clube ganhar mais jogos em campo — observa Rodrigo Capelo, jornalista especialista em negócios do esporte.
No Brasil, o exemplo mais recente teve final infeliz. O Figueirense deixou o seu departamento de futebol nas mãos da empresa Elephant. Mal administrado, o clube entrou em crise financeira e está na Terceira Divisão do Brasileirão.
— É preciso criar regras de avaliação de quem vão ser os donos, de que o clube civil possa votar em quem serão os novos donos. Existe uma euforia muito grande, mas é preciso ter cuidado, porque vai se errar muito nesse processo. Tem de ter paciência. Senão, corre-se o risco de acontecer o que aconteceu com o Figueirense — explica Grafietti.
De um jeito ou de outro, as SAF farão com que o futebol brasileiro não seja mais o mesmo daqui a algum tempo.
Tire suas dúvidas
Como se chegou às cifras envolvidas no negócio?
A definição do valor dependerá da força da marca de cada clube. Um estudo de mercado foi realizado para estimar o valor do negócio. A proposta de Ronaldo foi considerada a mais vantajosa. Os R$ 400 milhões serão investidos em um período de até cinco anos.
Como vai funcionar?
O Cruzeiro passa a ser dividido em dois, o Cruzeiro-Associação e o Cruzeiro-SAF. Este último será responsável por tocar o departamento de futebol do clube. A Associação terá direito a 20% das receitas e 50% dos dividendos da SAF.
Como ficam as dívidas?
As dívidas são anteriores à chegada de Ronaldo e pertencem ao Cruzeiro-Associação. Porém, o acordo entre Cruzeiro e Ronaldo definiu que o ex-jogador se tornou devedor solidário. O clube tem dívidas na casa de R$ 1 bilhão.
Os jogadores que estão lá pertencem ao clube ou ao Ronaldo?
O clube comunicou à CBF para passar os direitos de competição e de contratos de jogadores do clube associativo à SAF.
Como fica o Cruzeiro que não está vinculado ao futebol?
Com a criação da SAF, o clube Cruzeiro passa a ter seis anos para pagar 60% de sua dívida. Se atingir a meta, terá mais quatro anos para quitar o restante. O abatimento será feito através de 20% da receita mensal da SAF e 50% do lucro.
O que aconteceu com o Valladolid depois da chegada de Ronaldo?
A principal mudança ocorreu antes da chegada do ex-jogador, quando o Valladolid pediu recuperação judicial e teve 70% de sua dívida perdoada. Em 2018, Ronaldo adquiriu 51% das ações do clube por 30 milhões de euros (cerca de R$ 141 milhões, na cotação da época). Depois, adquiriu mais 21%. A equipe espanhola está saudável financeiramente, mas caiu para a Segunda Divisão na temporada passada.
Qual mudança estatutária que permite isso a partir da nova lei?
Na sexta-feira, em Assembleia Geral, os conselheiros do Cruzeiro mudaram o estatuto do clube permitindo que fosse criada a SAF, liberando o clube para que negociasse até 90% de suas ações. Esse foi o modelo adotado pelos mineiros. Cada clube poderá escolher o seu modelo.
Tipos de donos
Nem todo dono é igual. A compra de um clube faz parte da estratégia empresarial do comprador. Cada empresário vê uma oportunidade diferente ao colocar um clube em seu portfólio de negócios. Eles podem ser divididos em três tipos.
O primeiro deles são os bilionários com aporte financeiro ilimitado. Casos de Manchester City, Chelsea e Paris Saint-German. O grupo ganhou nos últimos meses a companhia do Newcastle, adquirido por um fundo de investimento da Arábia Saudita. Para eles, dinheiro não é problema. O valor depositado nas equipes é apenas um instrumento para obter vantagem esportiva.
Os cofres são abertos para satisfazer o prazer de ver seus times campeões. Também são acusados de fazerem sportswashing, quando o esporte é utilizado como pano de fundo para melhorar a reputação de um país ou região, geralmente uma localidade dirigida por um governo autoritário.
Existe uma série de clubes administrados por investidores americanos ou amparados por um modelo de gestão similar às ligas da terra do Tio Sam. Esse grupo tem tido alguma dificuldade para se adaptar ao mundo passional do futebol. Para esses empresários, o esporte é visto como um negócio financeiro e buscam o lucro. Defendem gastos mais controlados, com teto salarial, entre outras medidas.
Em geral, os clubes empresas tendem a utilizar seus recursos como clubes tracionais, aportando toda a receita no próprio clube.
Clubes que quebraram
A imagem de que novos donos são salvadores da pátria, como tem sido com Ronaldo, nem sempre se confirma. Em muitos casos, os clubes conseguem resultados a curto e médio prazos, mas, com o passar de tempo, os recursos ficam escassos e o destino pode ser o pior possível.
Itália
Se você quer saber como se quebra um clube de futebol, o seu destino deve ser a Itália. Neste século, de acordo com levantamento de 2018 do jornal La Repubblica, pelo menos, 153 clubes fecharam as suas portas no Calcio, afetando quase 10 milhões de torcedores. A lista já foi engrossada. Neste ano, quem fechou as portas foi o Chievo Verona.
Normalmente as equipes são refundadas, rebatizadas com um novo nome vinculado à agremiação anterior e recomeçam suas vidas a partir da quarta divisão. Há casos de equipes tradicionais que fizeram esse trajeto. Entre elas estão Fiorentina, Napoli e Parma.
Quem tem doutorado no assunto é o Venezia. Os Leões Alados já foram refundados em três oportunidades. Atualmente, estão na elite do futebol italiano, mas a quarta divisão pode ser logo ali.
Escócia
Nem 54 títulos nacionais foram suficientes para evitar que o Glasgow Rangers fosse à bancarrota em 2011. Após 139 anos de glórias, o clube foi comprado por Charles Green, passou a se chamar oficialmente de The Rangers e recomeçou a vida na quarta divisão.
Ucrânia
Cinco ano depois de chegar à final da Liga Europa de 2015, o Dnipro despencou para a Quarta Divisão. A queda aconteceu após Ihor Kolomyskyi, um dos homens mais ricos da Ucrânia, cansar da brincadeira e cessar o investimento. Nem mesmo as dívidas foram pagas.
Portugal
O que parecia ser a solução para o Belenenses se tornou uma dor de cabeça. Em 2012, o clube negociou 51% de suas ações para a empresa Codecity. Os empresários se mostraram pouco importados com a opinião da torcida e a história do clube. A solução foi recomeçar a história a partir das divisões amadoras de Portugal. O Belenenses Sociedade Anônima Desportiva segue a sua gestão empresarial na elite do país.