A viagem da judoca Taciana Lima César para sua segunda Olimpíada começou em Pernambuco, teve escalas no Rio Grande do Sul, em Guiné-Bissau e em Portugal até chegar à terra do judô. Já garantida nos Jogos de Tóquio, a atleta de 37 anos, sete vezes campeã africana, poderia muito bem estar no conforto de sua casa em Lisboa, curtindo a primavera do Hemisfério Norte ao lado do filho Gustavo, de dois aninhos. A brasileira naturalizada guineense, porém, ainda busca pontos no ranking mundial. Não para ela, pois já está classificada, mas sim para qualificar o marido e pai do seu filho, o judoca Diogo César, aos Jogos.
Antes de explicar como Taciana pode levar Diogo, 35 anos, português naturalizado guineense, para competir em Tóquio, é preciso voltar no tempo. Em 1992, a família Lima saiu de Olinda e foi para Canoas após o padrasto receber uma proposta de trabalho no RS. A jovem encontrou no judô uma forma de descarregar as energias. Aos 11 anos, influenciada pela irmã mais nova, entrou pela primeira vez em um tatame, o que mudou de vez sua vida.
Não demorou para que chegasse um convite da Sogipa. Foi lá que, em 1997, a brincadeira ganhou contornos de seriedade. Dividindo o tatame com João Derly, desenvolveu-se na modalidade e chegou à seleção brasileira de judô, passando pela mão de Antônio Carlos Pereira, o Kiko, um dos principais senseis do país.
— A Taciana sempre foi um exemplo de judoca, determinada, persistente e disciplinada. Manter o peso e as renúncias para ser atleta é algo anormal. É um esforço imenso, ainda mais sendo mãe. Ela é sinônimo de comprometimento e amor ao judô. É uma apaixonada pelo esporte — destaca Kiko.
Mas ainda faltava um passo: participar da Olimpíada. Em 2007, esteve perto de se classificar para os Jogos de Pequim, mas perdeu a seletiva para Sarah Menezes. Foi o clique que faltava para ir em busca do seu passado.
— Aquilo me afetou bastante. Por algum motivo, depois da derrota, tive vontade de conhecer meu pai. Sabia que ele não era brasileiro, mas nunca tive vontade de perguntar para minha mãe. Fiquei sabendo que se conheceram em Recife. Ele estava lá estudando quando minha mãe ficou grávida. Meu pai terminou a faculdade, teve de retornar para Guiné-Bissau, seu país de origem, porque terminou o prazo do visto de estudante. Eles perderam contato — relembra Taciana.
Uma rápida pesquisa no Google mostrou que Oscar Baldé, seu pai biológico, era na época Ministro da Pesca em Guiné-Bissau, pequeno país localizado no litoral oeste africano. Enquanto trocava mensagens e conhecia um pouco melhor a outra parte da sua família, a judoca treinava de olho nos Jogos de Londres 2012.
Um ano antes da Olimpíada, Taciana disputava a vaga ponto a ponto com Sarah Menezes — que mais tarde conquistaria o ouro na Inglaterra — quando sofreu mais uma dura derrota. Desta vez, fora dos tatames. Ela foi flagrada no doping e suspensa, numa punição que só foi retirada após mais de um ano, depois dos Jogos.
Taciana transformou a tristeza em coragem e trocou de país. Em Guiné-Bissau, conheceu o pai e se aproximou dos meios-irmãos. Entrou com um processo pela cidadania guineense, que veio logo em seguida. Não demorou para que se tornasse estrela no país, que tem um dos menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo e uma história marcada por golpes de estado. Virou vinheta no Jornal Nacional de Guiné-Bissau após o título africano, conquistando a primeira medalha do judô para o país na história da competição. O quimono com a sigla GBS nas costas conquistou, depois disso, mais seis ouros no torneio.
— A cultura esportiva de Guiné-Bissau ainda é crua. Há bastante a cultura do futebol, vários (jogadores) saem do país para jogar, mas as outras modalidades são iniciais — revela Taciana, que tem até passaporte diplomático do país.
Quem é
- Nome: Taciana Lima César. Brasileira naturalizada guineense, formada em Educação Física, com pós em Lutas
- Idade: 37 anos (17/12/1983, em Olinda, Recife)
- Principais conquistas: 7 vezes campeã africana. Campeã mundial de jiu-jitsu
Retorno após ser mãe
Resolvida com o passado e de olho no futuro, Taciana voltou a pensar nos Jogos Olímpicos. Como não há estrutura para treinamentos em Guiné-Bissau, mudou-se para Lisboa e ficou mais perto das principais competições do mundo. Com apoio da Federação Internacional de Judô (IJF), que até hoje cobre custos de atletas africanos e de países emergentes na modalidade, pontuou em torneios e terminou na 10ª colocação no ranking da categoria até 48kg. A posição lhe garantiu a sua primeira Olimpíada — logo no seu país de origem. Na Rio 2016, caiu na segunda rodada, mas pôde realizar o sonho como atleta.
Tenho muito orgulho de ver a minha filha em mais uma Olimpíada. A trajetória dela é de vitória. Acompanho sempre as competições e fico muito nervosa. Assisto às lutas pela internet e grito como se estivesse no ginásio
RAQUEL LIMA
mãe de Taciana
Ainda faltava o sonho pessoal de ser mãe. Em Lisboa, Taciana se casou com o português Diogo César, judoca da categoria até 66kg, que se naturalizou guineense após a união. Em 2018, nasceu Gustavo, o filho dos atletas.
— Criamos esse objetivo após os Jogos do Rio. Queríamos ter um filho e disputar a Olimpíada de Tóquio juntos, com o Gustavo na arquibancada. Infelizmente, com a pandemia, ele terá de nos ver de casa — projeta Taciana.
Se o pós-parto já é difícil, imagine para uma atleta. Taciana retornou aos tatames apenas quatro meses após o nascimento de Gustavo. Aos 35 anos, idade avançada para o judô, teve de lidar com a desconfiança e manter o alto rendimento para seguir pontuando no ranking e não deixar Tóquio escapar. Com auxilio do comitê olímpico e da secretaria de estado de Guiné-Bissau, o casal continuou nas competições, mas teve de adaptar a rotina. Em torneios fora de Portugal, a família ficava no mesmo hotel, mas, na noite antes de lutar, Taciana deixava Gustavo e Diogo e alugava um outro quarto para poder descansar sem a atenção do bebê. O inverso ocorria antes de Diogo entrar em ação.
— Depois que fui mãe, tive que investir em mim mesma porque ninguém acreditava que uma pessoa com 35 anos poderia ser mãe e voltar a competir em alto nível. A mulher, no esporte, depois que é mãe, parece que não vale mais para nada — desabafa Taciana.
A mulher, no esporte, depois que é mãe, parece que não vale mais para nada
TACIANA LIMA
JUDOCA E MÃE
No meio desta rotina agitada, Taciana e Diogo encontraram tempo para abrir um clube de judô. Com o objetivo de atrair mais pessoas para a modalidade, o Clube Atlético Alta de Lisboa oferece, com o apoio da prefeitura e pelo valor simbólico de até 9 euros por mês, duas aulas semanais para cerca de 300 pessoas — é o sexto com mais atletas federados no país.
Projeto de equipe e de família
Mesmo com a paralisação das atividades por causa da pandemia, Taciana e Diogo puderam continuar treinando no próprio clube. Na volta às atividades do judô, deixam Gustavo com padrinhos enquanto viajam pelo mundo em busca dos pontos para a Olimpíada. A classificação de Taciana já está garantida, mas ela tenta levar Diogo para os Jogos.
Os 18 melhores de cada categoria garantem vaga na Olimpíada, com um representante do Japão (sede) por peso — apenas o melhor ranqueado de cada país se classifica. Depois que fecha esta lista, a IJF concede vagas continentais — na África, classificam-se os 12 melhores homens e as 12 melhores mulheres. Só pode, porém, um representante por país entre estes 24. Ou seja, como Taciana é a guineense mais bem colocada, ninguém mais do
país tem chance de se classificar pela cota continental, mesmo estando entre os 12 melhores — caso de Diogo, que é sétimo entre os “cotistas”.
Para Diogo ficar com a vaga de Guiné-Bissau, Taciana precisa chegar entre as 18 melhores da sua categoria (fora os descartes) e “liberar” a vaga continental do seu país. Na quarta-feira, Taciana foi eliminada na primeira luta no Grand Slam de Kazan. No Mundial, em junho, na última competição antes de Tóquio, precisará de uma boa colocação para pontuar e alcançar a zona de classificação na sua categoria, liberando assim a cota continental para Diogo.
— A torcida é em dobro. Torço para ela para mim. Nós começamos essa caminhada com objetivo de estarmos juntos em Tóquio. É um projeto de família, de equipe. Queremos que seja uma boa recordação e uma boa experiência — projeta Diogo.
Mesmo se ficar de fora do ranking, Diogo estará em Tóquio com Taciana, mas como seu técnico. O plano principal, porém, é que a mãe e o pai de Gustavo entrem no tatame em 25 de julho, no segundo dia de disputas do judô nos Jogos Olímpicos.
Só deu certo porque somos muito companheiros e temos um filho que é novo, mas é nosso parceiro e entende
TACIANA
mãe e judoca
— É muito difícil ter um filho e voltar a competir. Quando chegou a pandemia, tivemos um aperto no peito pensando que tudo poderia ir por água abaixo em caso de cancelamento. No final, vai ter Olimpíada. Nós dois nos ajudamos demais. Isso só deu certo porque somos muito companheiros e temos um filho que é novo, mas é nosso parceiro e entende — finaliza Taciana.
Em 24 de março de 2020, dia em que os Jogos de Tóquio foram adiados, Taciana publicou uma foto no seu Instagram carregando a bandeira de Guiné-Bissau na abertura da Olimpíada do Rio. Na legenda, fez um apelo para que as pessoas se cuidassem durante a pandemia e escreveu: “Eu vou viver mais um dia feliz como este”. O planejamento deu certo. A sua viagem para Tóquio já tem data marcada. Resta, agora, saber se Diogo também estará na disputa.
Quem é
- Nome: Diogo César
- Naturalidade: Português, com cidadania guineense
- Idade: 35 anos (20/2/1986, em Portugal)
- Principais títulos: 3 vezes campeão português
- Categoria: meio-leve (-66kg)