Segundo levantamento do Observatório da Discriminação Racial do Futebol, 56 casos de racismo e injúria racial ocorreram no futebol brasileiro em 2019. Só no Rio Grande do Sul, foram 14. Alguns deles tiveram o autor identificado, mas ninguém foi penalizado judicialmente pelas ocorrências em estádios gaúchos.
Dois casos de injúria racial no Rio Grande do Sul foram punidos com multas aos clubes no ano passado. Porém, nenhum dos xingamentos de cunho racista de qualquer das ocorrências geraram ações judiciais. Juventude e Novo Hamburgo pagaram R$ 10 mil e R$ 1,25 mil, respectivamente, por decisões do Supremo Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) e do Tribunal de Justiça Desportiva do Rio Grande do Sul (TJD-RS). Na Serra, o responsável foi identificado e banido do quadro social. No caso do Novo Hamburgo, e em outras ocasiões, o infrator sequer foi identificado.
A identificação é crucial para punir o responsável, mas não é o único requisito. Depois que o infrator é reconhecido e levado para a delegacia do estádio, é necessário ainda que a vítima registre boletim de ocorrência.
Se não puder fazê-lo no momento seguinte ao incidente, como em casos de jogadores ou comissões técnicas visitantes que não tenham tempo disponível, há a possibilidade de prestar queixa em qualquer delegacia da Polícia Civil no país. Sem isso, não ocorre abertura de inquérito policial.
A Delegada Shana Hartz, diretora do Departamento de Proteção a Grupo de Vulneráveis da Polícia Civil do RS, explica que um boletim de ocorrência registrado na presença de vítima e infrator pode resultar em prisão em flagrante. Ela alerta para a importância de reunir indícios e testemunhas do ato de injúria racial:
— A gente sempre instrui a gravar, filmar, buscar alguém que estava do lado e tenha visto para testemunhar junto. A vítima ou alguma testemunha tem de comunicar à segurança ou à Brigada Militar, e aí esse agente vai conduzir os participantes para o posto da Polícia Civil do estádio.
A delegada ressalta o caráter subjetivo do crime de injúria, replicado nos parágrafos de injúria racial. Há diferença para crime de racismo. O primeiro prevê pena de um a três anos de prisão. Depende, ainda, de queixa por parte da vítima, porque a ofensa tem de ser reconhecida por quem a sofreu.
— O crime contra a honra é subjetivo. A vítima pode ou não se sentir ofendida. Cada um tem a sua ideia de ofensa — explica a delegada.
Os casos de xingamentos de cunho racista entre torcedores ou jogadores em estádios geralmente não se enquadram no texto destinado ao crime de racismo na constituição brasileira. O procurador de Justiça do Rio Grande do Sul e coordenador da Comissão Permanente de Defesa dos Direitos Humanos, Jorge Terra, propõe uma mudança na interpretação da lei.
Ele acredita que as infrações tidas como injúria deveriam ser incluídas nos mesmos parâmetros do crime de racismo. O crime de injúria tem pena mínima de um ano e pode levar à suspensão do julgamento com punição de pagamento de cestas básicas ou prestação de serviços comunitários.
— Para mim, não existiria injúria, pois isso é um ataque direcionado. Quando chamo alguém de macaco, não quero exatamente causar uma mácula pessoal. O que eu faço é me valer de um estigma que aquela pessoa já tem, me valendo de estigmas sociais históricos para dizer que sou superior a ela — opina. — Esta figura da injúria racial é desnecessária, a meu ver.
Caso a injúria fosse classificada como ofensa dentro do crime de racismo, o processo deixaria de ser condicionado à queixa pessoal, como é hoje. Se na legislação atual a vítima precisa se manifestar para que a polícia instaure inquérito, com a ideia do procurador o Ministério Público poderia agir mesmo sem a queixa da vítima.
O episódio no Jaconi
Em 11 de abril de 2019, pela Copa do Brasil, Juventude e Botafogo se enfrentaram em Caxias do Sul. Durante a partida, Gustavo Bochecha, no banco de reservas do clube carioca, foi chamado de macaco por um torcedor do time da casa. Os jogadores identificaram o torcedor, e soldados da Brigada Militar o conduziram até a delegacia do Juizado Especial Criminal (Jecrim).
O Jecrim da 2ª Vara Criminal de Caxias do Sul explica que o homem foi detido e, com os delegados, esperou pela vítima até depois da partida para procedimento da queixa. O jogador ofendido, Gustavo Bochecha, não compareceu. Para um próximo passo, havia a necessidade de registro de boletim de ocorrência pelo volante e sua defesa até seis meses depois do incidente. Não houve a manifestação, e o inquérito que levaria ao processo de injúria racial não foi instaurado.
O jogador poderia ter registrado boletim de ocorrência em qualquer delegacia de Polícia Civil do país, física ou virtual. Para o procurador Jorge Terra, a não manifestação das vítimas em casos como este pode ser vista como indício de um traço negativo e lamentável da cultura brasileira, herdado do período da escravidão.
— É também resultado de uma baixa auto-estima social. Por isso, também, que se fala tanto em estética negra. Cabelo e roupa, procedimentos. Estamos em um processo de recuperação dessa auto-estima negra. Ao não denunciar, essas vítimas não estão dizendo que é certo o que o agressor fez, mas não se colocam em posição de um cidadão que busca a punição de um ato errado cometido por seu agressor — avalia o procurador, que conclui:
— A mudança disso tudo demanda tempo e interpretação da lei. Temos, no Rio Grande do Sul, três juízes negros, três procuradores negros e aproximadamente sete delegados negros. Ou seja, ainda é necessário que as próprias instituições se repensem.
O sistema de consulta aos processos no site do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul registra a extinção de punibilidade e arquivamento do caso de racismo no Alfredo Jaconi em 11 de novembro de 2019. Ou seja, o torcedor que supostamente teria cometido injúria racial contra o jogador não será julgado ou punido pelo eventual crime.
A reportagem tentou entrar em contato com o jogador Gustavo Bochecha por meio da assessoria do Botafogo, mas o atleta preferiu não conceder entrevista.
A diretoria do Juventude, à época, divulgou uma nota de repúdio ao ato e reforçou que a postura não reflete a totalidade da torcida do clube. O Supremo Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) aplicou uma multa de R$ 10 mil.
O presidente do Juventude, Walter Dal Zotto Júnior, manifestou-se à favor da punição ao time e destacou a sanção do próprio clube ao torcedor infrator. Inicialmente, foi estipulada uma proibição de acesso dele ao estádio por dois anos. Porém, não foi levada adiante, pois nem o TJD nem o TJ teriam como executar ou fiscalizar o cumprimento da pena.
— O banimento do quadro social é uma medida educativa aos nossos torcedores para que comportamentos como este sejam banidos definitivamente de nossa sociedade — comenta Dal Zotto.
Torcedor do Novo Hamburgo
Em setembro, Carlos Miguel, goleiro do Inter B, ouviu gritos de "macaco" da torcida do Novo Hamburgo no Estádio Morada dos Quero-Queros, em Alvorada, pela Copa FGF. Ele comunicou ao quarto árbitro da partida, que registrou na súmula. A Brigada Militar chegou a ser acionada, mas o autor do insulto não foi identificado.
O protocolo da Fifa para situações de injúria racial e racismo define que o árbitro e sua equipe têm todos o mesmo poder de relato na súmula. Durante a partida, deve-se comunicar o acontecimento da injúria no sistema de som do estádio orientando que a torcida pare, e, em caso de reincidência, o juiz tem a possibilidade de encerrar a partida.
Considerando o artigo 243-G do Código Brasileiro de Justiça Desportiva — que prevê pena de R$ 100 a R$ 100 mil — o TJD-RS absolveu o Novo Hamburgo por dois votos a um em um primeiro julgamento. No Pleno, entretanto, o clube foi condenado a pagar multa de R$ 1,25 mil.
Segundo o vice-presidente do TJD-RS, auditor Marcelo Azambuja, a diferença para o valor da multa de R$ 10 mil dada ao Juventude se dá pelas capacidades financeiras dos dois clubes.
Além da menor estrutura do Novo Hamburgo, a ausência de evidências mais concretas também levou o auditor a votar pela absolvição do clube. Azambuja conta que o goleiro não comunicou o árbitro principal da partida e que a súmula cita apenas gritos, sem a identificação do torcedor, nem registro de boletim de ocorrência por parte da vítima.
— A situação de cometer injúria racial é grave. Não se tolera mais. Só que, como tudo em processos na Justiça Desportiva ou comum, precisamos de provas. Não posso me deixar levar pela onda e sair condenando. Vai deixar uma mancha de clube racista, e nós já temos essa imagem de Estado racista, e não somos. São casos isolados — avalia Azambuja.
O auditor do TJD-RS também explica que punições mais severas, como perda de mando de campo, são geralmente cogitadas em casos de violência física nas arquibancadas, arremesso de objetos no campo ou casos mais graves e claros de injúria racial.
O analista de arbitragem de GaúchaZH, Diori Vasconcelos, explica que o registro na súmula é imprescindível. O relatório tem peso de documento oficial e serve como prova para a condução do julgamento nos tribunais desportivos.
— Esses casos geram uma comoção normal e esperada de um episódio que é nojento e desprezível. Dificilmente vai acontecer uma ofensa racista e só uma pessoa vai ver ou ninguém vai se indignar. Vai gerar uma indignação, porque é assim que imagino que as pessoas devem reagir a situações assim — destaca o comentarista.
Dificuldades para buscar justiça
Marcelo Carvalho, responsável pelo Observatório de Discriminação Racial do Futebol, reuniu informações e acompanhou 56 casos de injúria racial no futebol brasileiro em 2019. No Rio Grande do Sul, foram 14. Ele conta que vítimas encontram empecilhos para fazer com que os casos sejam levados até o poder público e à Justiça comum:
— A grande dificuldade que existe hoje é de que os jogadores registrem o boletim. Já monitoramos casos em que a vítima foi até a delegacia e não conseguiu registrar por falta de testemunha, ou porque não era residente do Estado onde tinha sido vítima e estava tentando prestar queixa. É preciso, além de conscientização, um treinamento para que a polícia esteja pronta para registrar este tipo de ocorrência corretamente.
Os outros 12 casos de injúria racial no futebol gaúcho de 2019 listados pelo Observatório da Discriminação Racial do Futebol:
— Súmula aponta caso de racismo em campeonato de futebol de Muçum (futebol amador);
— Torcedora é chamada de macaca em jogo da Divisão de Acesso no RS;
— Torcedor paraense relata atos de racismo durante jogo do Remo na Série C (Juventude x Remo, em 4/5/2019, pela Série C do Brasileirão);
— Lateral do Fluminense acusa torcedores do Grêmio de racismo contra Yony González (Grêmio x Fluminense, em 5/5/2019, pelo Brasileirão);
— Torcedor é preso por injúria racial durante jogo da terceira divisão gaúcha (Rio Grande x E.C 12 Horas, em 26/5/2019, pela Terceira Divisão Gaúcha);
— Jogo do Brasil-Far termina com denúncia de injúria racial e jogador preso (Gaúcho x Brasil-FAR, em 29/5/2017, pela Terceira Divisão Gaúcha);
— Denúncia de racismo contra atleta do União Harmonia no Gauchão Sub-15 (Igrejinha x União Harmonia, em 15/6/2019, pelo Estadual Sub-15);
— Jogador do Remo sofre racismo em jogo contra o Ypiranga-RS na Série C (Ypiranga-RS x Remo, em 19/7/2019, pela Séria C do Brasileirão);
— Jogadores do Volta Redonda sofrem ofensas racistas no jogo no Sul: "Bando de macacos", árbitro relata em súmula (Ypiranga x Volta Redonda, em 03/08/2019, pela Série C do Brasileirão);
— Caso de racismo no Estadual juvenil (Panambi x Uruguaiana, em 11/8/2019);
— Cenas de racismo no Estádio Beira-Rio;
— Márcio Chagas é vítima de ataque racista nas redes sociais.