Foi um sábado (15) feliz em Porto Alegre. Um sábado de Copa, como não havia há cinco anos na cidade. Venezuela e Peru entraram para a história esportiva gaúcha, disputando nosso primeiro jogo de Copa América – algo importante para quem ainda está longe demais das capitais.
Mas foi, sobretudo, um sábado de bondade. Um dia daqueles que o futebol muitas vezes proporciona. Dentre os 13.370 torcedores que compareceram à Arena – a maioria formada por peruanos –, estavam 30 venezuelanos que buscaram abrigo em Porto Alegre. São imigrantes que viajaram mais de 4 mil quilômetros para sobreviver. Em uma iniciativa da Secretaria Estadual de Esporte e Lazer e da Promotoria do Torcedor do Ministério Público, eles ganharam ingressos para o jogo.
Antônio, 47 anos, estava emocionado. Jogou futebol na infância, mas nunca havia assistido à "vinotinto" – como é conhecida a seleção venezuelana, devido ao uniforme cor de vinho tinto – ao vivo.
— Estou vivendo um sonho. Estou todo arrepiado. Não tenho palavras para agradecer este gesto — disse ele que, assim como os demais imigrantes venezuelanos, acolhidos pela ONG Aldeias Infantis SOS, no bairro Sarandi, zona norte da Capital, foi agraciado com as entradas.
As coordenadoras da ONG acompanham de perto as entrevistas. Temem que declarações possam causar represálias para os familiares, que ainda estão na Venezuela. Por esse motivo, optou-se por não publicar sobrenomes nesta reportagem. E os bilhetes eram de luxo: nas cadeiras no setor Inferior Leste da Arena, nas primeiras fileiras, quase dentro do campo. A gurizada fez a festa. O hino nacional foi cantado a plenos pulmões e com lágrimas nos olhos. A puída bandeira amarela, azul e vermelha era sacudida com brio. Difícil lembrar de casa quando se está longe por extrema necessidade.
Mas quando o colombiano Wilmar Roldán apitou o começo do jogo, o que era saudade se transformou em eletricidade. A cada ataque de Rondón e de Murillo, os venezuelanos se levantavam, gritavam, xingavam. Pareciam exorcizar suas dores. As crianças, que já frequentam escolas em Porto Alegre e compreendem melhor o português do que os adultos, se divertiam, gargalhavam com os palavrões na língua de Camões.
O telão da Arena, então, foi um espetáculo à parte para a piazada. Jamais haviam ido a um estádio de futebol. Ainda mais com a imponência da casa gremista. Os olhinhos ficavam vidrados na "pantalla", esperando que aparecessem lá no alto, a fim de abanar para o estádio todo. Mas isto eles não conseguiram. Quando, atrás deles, um grupo de colorados xingou um defensor vinotinto pela falta dura em Paolo Guerrero, os neo-gauchinhos reagiram, viraram-se e devolveram os impropérios.
— O senhor não imagina a emoção que é para nós estarmos aqui, assistindo à nossa seleção. É uma forma de estarmos em casa de novo. Por pelo menos 90 minutos. É um dos dias mais felizes da minha vida: ver a minha seleção, em um estádio que parece na Europa, e o melhor, de graça — divertiu-se Alberto, 43 anos.
Mas houve contrastes venezuelanos também. Enquanto o grupo cuidado pela Aldeia Infantil SOS acessava à Arena, do outro lado da rua, em um bar, estava um grupo de aproximadamente 20 venezuelanos, todos fardados com camisas oficiais da seleção, relógios caros e cerveja na mão. Alentavam a vinotinto, apesar do embalo a malte e cevada.
O curioso é que apenas um deles ainda vive na Venezuela. Os demais, estão espalhados pelo mundo há pelo menos três anos. Moram no Rio, em Madri, em Santiago, em Montevidéu e até em Los Angeles.
— Não fui embora porque meus pais são idosos e não têm como sair de Caracas. Também não fui porque, apesar de passar pelos mesmos problemas de falta de luz, de escassez de produtos no supermercado, e de violência, trabalho em uma multinacional e tenho uma boa condição financeira. Mas sei que sou exceção hoje no meu país — afirmou Jeison, 38 anos, que investiu pouco mais de US$ 1 mil para a viagem Caracas-Buenos Aires-Porto Alegre, a fim de assistir à Venezuela e Peru.
— Nós fomos embora de Portuguesa, uma cidade no interior da Venezuela, porque a violência estava muito grande. Não nos sentíamos mais seguros em casa, não podíamos mais sequer sair depois das 18 horas — relatou Oscar, 28 anos, que é chef em um restaurante de Montevidéu, e que estava com a namorada, Cilene, 26, que também trocou a Venezuela por uma vida segura no Uruguai.
— É muito, muito triste ter de ir embora, mas não tivemos escolha. Lamento muito que nossos irmãos necessitem abrigo no Brasil, mas, infelizmente, não me parece uma questão de solução rápida a crise que vivemos na Venezuela — completou Cilene.
Com um país em grave crise socioeconômica, era de se esperar que os venezuelanos fossem minoria em Porto Alegre. Pois a Arena teve uma invasão em vermelho e branco, que sequer ocorre em Gre-Nais. Festivos e animados, os peruanos têm em Paolo Guerrero uma espécie de Messi, em sua Guerreromania.
— Guerrero é uma religião para nós — conta Odilio D'Avila, 32 anos, com camisa número 9 do capitão peruano às costas. — Paolo é um ídolo porque é ainda é o melhor jogador do Peru, mesmo aos 35 anos — completou o torcedor.
Entoando melodias comuns à dupla Gre-Nal, os peruanos pareciam estar no carnaval. Do Fantasma de 1969 – um sujeito que se veste com um manto branco, colares, anéis, e óculos de natação, e que remete o seu personagem às Eliminatórias para a Copa de 1970, quando na Bombonera, o Peru empatou em 2 a 2 com a Argentina e se classificou e deixando os argentinos fora do Mundial – aos gorros emulando capacetes da dinastia inca, muitos torcedores peruanos chegavam ao estádio carregando lhamas infláveis.
— É nosso símbolo nacional, nossa mascote. Ela está por toda a parte — explicou Francisco Rivera, 60 anos, dono de uma das muitas lhamas peruanas.
Enquanto Emilia Rodriguez, 54 anos, tentava vender camisas da seleção peruana a "90 reales", em frente à Arena, as autodenominadas musas do Peru desembarcavam no estádio. Vestindo casacos longos, de couro branco, e com muitos brilhos, a dupla dizia ser "as noivas da Copa América".
— Somos as Perulovers. Vamos acompanhar a seleção por toda a Copa América, a começar por Porto Alegre. E esperamos ir também ao Maracanã — disse Jessy Kate, tão desinibida como a sua colega Elvira Palomino.
Apesar do 0 a 0 entre venezuelanos e peruanos, a Arena ficou multicolorida. O setor da Geral parecia um grande mosaico feito por Romero Britto e, em mais um dia de Copa, o Rio Grande do Sul pôde fazer o bem, fez sorrir os seus 30 novos gaúchos.