A cena se repete: aos poucos, eles vão tomando as arquibancadas, com óculos chamativos, jeans rasgado, tênis da moda ou sapato. A maioria veste camisas. Alguns, camisetas com famosas logomarcas esportivas. Neste ano, eram cerca de 40 e todos têm conexões com a Europa. Munidos de bloquinhos e caneta ou laptops, os olheiros e empresários dividem com os parentes dos jogadores cada centímetro de concreto dos estádios que abrigam a Copa Internacional Ipiranga Sub-20, que se encerrará neste domingo, às 11h30min, quando Palmeiras e São Paulo farão a final, no campo da PUCRS.
Na Europa, eles são chamados de scoutings. Distribuídos pelas arquibancadas dos campos do Sesc e da PUC, na Capital, da Morada dos Quero-Queros, em Alvorada, e do Homero Soldatelli, em Flores da Cunha, não se destacam pela ostentação. Anotam as escalações, o esquema tático e o que cada jogador faz de melhor em campo. Identificam com uma estrelinha os que mais se destacam e lançam sobre eles um olhar ainda mais atento na partida seguinte.
Empresários habituados a fechar negócios com clubes europeus, Rogério Braun e Jorge Machado não hesitam em apontar a Copa Internacional Ipiranga Sub-20 como mais atraente do que a Copa São Paulo. Na edição deste ano, enviaram observadores clubes como Barcelona, Real Madrid, Manchester City, Manchester United, Chelsea, Arsenal, PSG, Inter de Milão, Roma, Milan, Monaco, Valladolid, Atlético de Madrid, Alavés, Braga e Estoril, entre outros. Até olheiros da Major League Soccer (MLS), a liga de futebol norte-americana, fizeram reservas em hotéis do bairro Moinhos de Vento.
- Aqui, pelo tamanho da cidade, é possível ver três jogos por dia. Em São Paulo, eles precisam percorrer até 400 quilômetros entre um estádio e outro e veem, no máximo, duas partidas - diz Rogério Braun.
A primeira fase da competição é olhada com mais cuidado. Como são jogos demais para pouco tempo de torneio, os scoutings dão descontos para um eventual cansaço que resulte em queda de rendimento do jogador. Nesta semana, quando se iniciaram os mata-matas, a maioria dos agentes já tinha voltado para suas bases. Dificilmente algum negócio é fechado, tamanha a dificuldade de acesso aos jogadores, que raramente deixam de estar acompanhados por familiares ou representantes. Mas quando a Copa se encerra, os jogadores mais destacados já entraram automaticamente no radar dos clubes da Europa.
O torneio gaúcho, que já cumpre a sua sexta edição, pode ser a porta de entrada de muitos destes jovens atletas para o sonho de fazer contas em euros. Alexandre Pato, Luiz Adriano, Luan, Rodrigo Dourado, Pedro Rocha, Arthur, Lucas Paquetá e, mais recentemente, Martín Sarrafiore, ganharam ali os primeiros olhares.
O torneio de âmbito continental disputado no Rio Grande do Sul trocou de nome a partir de 2016. Antes, ele se chamava Campeonato Brasileiro Sub-20. Em sua primeira edição, realizada em junho de 2006, o Inter se sagrou campeão, com um time que contava com Muriel, Alexandre Pato, Luiz Adriano, mais o atacante nigeriano Abu, e que na final goleou o Grêmio por 4 a 0. Mas, na temporada 2015, a CBF decidiu encampar o torneio e o transformou no atual Brasileirão de Aspirantes - competição que é disputada o ano todo, em turno e returno, e cuja decisão ocorreu em 24 de novembro. A Federação Gaúcha de Futebol, por sua vez, entendeu que a sua competição poderia coexistir (ou quase) com o novo campeonato nacional da categoria, chancelado pela CBF. Assim, menos de uma semana depois de o Brasileirão chegar ao fim, a Copa Ipiranga se inicia.
Para diferenciar um pouco o torneio disputado no Rio Grande do Sul, além dos clubes brasileiros, são convidados hermanos do Prata como Peñarol, Nacional-URU, Defensor, Racing, River Plate, Independiente e, nesta edição, os mexicanos do Toluca. O Huracán (ARG) não vem mais. Desde que o Inter contratou Martín Sarrafiore, após analisá-lo na Copa Ipiranga, os argentinos romperam com a FGF e se negaram a voltar ao torneio.
- A Copa Ipiranga serve mais para olheiros e para os empresários do que para os clubes - conta um empresário, sentado na arquibancada da Morada dos Quero-Queros, enquanto assistia à vitória do Inter sobre os uruguaios do Defensor, e pedindo para manter o anonimato, devido ao bom relacionamento com os clubes gaúchos. - O atleta da categoria sub-20 geralmente já está pronto, e o clube o conhece bem. Assim, o torneio se mostra mais interessante para futuras vendas para o futebol europeu. O que, muitas vezes, acaba sendo bom para o clube também. Mas o nível deste ano está fraco - acrescenta ele.
A competição gaúcha é a última da temporada para os empresários. Durante o ano, eles rodam o Brasil assistindo aos torneios estaduais mais as 23 competições de categorias de base que têm mais relevância para análise e investimento europeu em atletas brasileiros, de preferência com idade até 17 anos.
- O clube europeu hoje busca uma joia, uma pérola, que possa fazer a diferença em seus times e, mais adiante, valorizá-lo muito mais - conta o italiano Lucio Di Cesare, de 49 anos, e que fez do Brasil e do futebol nacional a sua casa há mais de 20 anos.
Conversando em bom português, Di Cesare se considera um "operador de mercado". Advogado de formação e torcedor da Roma, ele se apaixonou pelo país depois que Falcão vestiu a "giallorossa". O advogado italiano trabalha com a Roma, a Inter de Milão, o Milan e a Sampdoria.
- Eu não compro jogadores, apenas entro em campo quando sou consultado. Muitas vezes dou a minha opinião sobre o jogador de interesse destes clubes. Sou um intermediário entre os clubes e os empresários. Para o clube europeu, é complexo entender como os jogadores brasileiros têm os seus direitos "fatiados" entre clube, empresário, pai, irmão, família, empresas, enfim. Meu trabalho é acertar todas as partes para que a contratação possa ser feita - afirma Di Cesare.
Ainda que a mina de ouro para a Europa seja de jogadores sub-17, os atletas com 18 anos ou mais têm como vantagem poder embarcar direto para os gigantes do velho mundo, uma vez que já são considerados emancipados. O atacante Vinicius Júnior foi comprado pelo Real Madrid ao Flamengo aos 17 anos, mas se apresentou no Santiago Bernabéu três dias depois de cumprir 18 anos.
Em dificuldades financeiras, se comparado ao futebol inglês e espanhol, o mercado italiano é atualmente considerado recessivo. As compras de Cristiano Ronaldo, por 100 milhões de euros, pela Juventus, e a de Lucas Paquetá, por 35 milhões de euros, pelo Milan, são exceções. Por isso, há uma intensa busca dos italianos por jovens que possam movimentar o caixa dessas equipes em um futuro próximo.
- Nossa missão é antecipar o mercado. É encontrar, negociar e contratar um jovem atleta por um valor baixo, e que poderá ou não estourar mais tarde na Europa. Tudo é risco - comenta Lucio Di Cesare, apontando que o mercado atual pagará no máximo 8 milhões de euros por jogadores sub-18 no Brasil.
Dos quase 20 anos de carreira, o ex-atacante e ídolo da dupla Gre-Nal Christian Dionísio construiu 13 deles no Exterior. Passou por Portugal, França, jogou no Japão, na Turquia e no México. Fez contatos ao redor do planeta. E, agora, coloca a sua expertise a serviço de muitos clubes continentes afora. Christian e o seu irmão Marcelo fundaram a D&D, empresa de scouting e de monitoramento de talentos. O antigo camisa 9 da Dupla acompanhou diversos jogos da Copa Ipiranga. A sua empresa está trabalhando para três clubes europeus.
- Costumo recepcionar emissários de um clube francês. Desta vez, recepcionei emissários de três importantes clubes da Europa - conta Christian. - A Europa procura talentos, independentemente de posição. A Copa Ipiranga é uma competição de observação. Vamos seguir monitorando os jogadores que chamarem a nossa atenção aqui, mas nenhum negócio será fechado agora - agrega o ex-camisa 9.
Christian salienta que os gigantes da Europa muitas vezes assistem aos vídeos e analisam os scoutings destes atletas jovens para descartá-los.
- É utopia pensar que Real Madrid, Barcelona, Manchester City estão aqui para comprar jogadores na janela de agosto. Muitos deles analisam atletas para tirar alguma dúvida que resta sobre determinado jogador. Agora, é fato que os clubes europeus têm muito mais interesse por esta análise de atletas do que os brasileiros. É mais fácil encontrar um representante de clube da Europa no estádio do Sesc ou no da PUC do que um integrante de clube brasileiro - aponta Christian.
Mateus Rosa, sócio da Soccer House, empresa de agenciamento e análise de mercado, assistiu a 310 jogos de categorias de base na temporada. Na PUC, tomava anotações de jogadores na vitória do São Paulo sobre o Vasco, na semifinal da Copa Ipiranga. Em duas semanas, estará assistindo à Copa São Paulo de Juniores, a fim de acompanhar atletas para Figueirense e Paraná Clube.
- Estamos ampliando o nosso banco de dados. Rodei o país monitorando jogadores, dos 14 anos, na Copa Santiago, até os profissionais. A grande vantagem da Copa Ipiranga é que ela nos dá a oportunidade de vermos também os jogadores de fora do Brasil. Neste ano, tivemos Toluca (MEX), Peñarol (URU), Nacional (URU), Defensor (URU), River Plate (ARG), Independiente (ARG) e Racing (ARG). Evelio Cardozo, de 17 anos, camisa 10 do Racing, é excelente. Já tem potencial de Europa - afirma Mateus Rosa.
A América do Sul e a África são vistos como os grandes mananciais para abastecer o futuro das grandes ligas europeias. Há fartura e qualidade, coisas que nem sempre estão alinhadas nas categorias de base Europa afora. Somente no ano passado, o futebol brasileiro fez R$ 1,16 bilhão na venda de 853 atletas para o Exterior, conforme a CBF.
O levantamento final da temporada 2018 será sacramentado somente na virada do ano. Os números de meio de temporada da entidade, porém, já indicavam um novo recorde: R$ 1,3 bilhão em vendas. Este valor, obviamente, terá um polpudo acréscimo após 31 de dezembro - ainda que esta janela de dezembro/janeiro seja considerada menor do que a de julho/agosto.
Até 31 de agosto de 2018, o Brasil vendeu 116 jogadores para fora do país. Ao todo, se considerando empréstimos e atletas já sem contrato com clubes nacionais que se transferiram, 808 jogadores profissionais saíram do país na janela internacional. Definitivamente, o futebolista brasileiro é um produto de exportação.
- É só você ver quantos garotos nós temos atuando no futebol brasileiro. Temos um continente inteiro dentro de um país. O Brasil seguirá abastecendo o mercado europeu. Nosso talento ainda é e seguirá sendo um diferencial aos olhos da Europa - declara o empresário Fernando Otto.
No ano que vem, a Copa Ipiranga promete ser ainda mais atraente. Divulgador voluntário do torneio durante as viagens que faz ao Exterior, Rogério Braun não descarta que clubes da Europa possam participar da próxima edição. Um deles seria o Benfica, de Portugal. Neste ano, o Boca Juniors preparava-se para mandar seus garotos para o torneio, mas um surto de caxumba abortou a viagem.
O Brasil seguirá exportando talentos. Muitos dos quais conheceremos apenas pela TV.
Clubes do Exterior que contam com observadores na Copa Ipiranga
Da Espanha:
Barcelona
Real Madrid
Valladolid
Atlético de Madrid
Alavés
Da Inglaterra:
Manchester City
Manchester United
Chelsea
Arsenal
Da França:
PSG
Montpellier
Monaco
Da Itália:
Inter de Milão
Roma
Milan
Sampdoria
De Portugal:
Braga
Estoril
Dos EUA:
FC Dallas
LA Galaxy