Daiane dos Santos já eletrizava o Brasil em provas da ginástica no solo em Pan-americanos e campeonatos da modalidade. Foi a partir de seu ouro no Mundial de 2003 (então inédito para um atleta brasileiro) que ela prendeu a atenção do país sempre que competia sobre o tablado, muitas vezes exibindo os complexos movimentos duplo twist carpado e duplo twist esticado – que significavam isso mesmo, um giro em torno de si acrescido de um mortal duplo, que ela inventou com o técnico ucraniano Oleg Ostapenko.
Descoberta fazendo piruetas em uma pracinha no Menino Deus, em Porto Alegre, aos 11 anos Daiane deu início a uma carreira que em geral começa muito mais cedo, aos sete ou oito anos. Competiu nas Olimpíadas de Atenas-2004, Pequim-2008 e encerrou a carreira em Londres-2012. Agora, Daiane trabalha com crianças em projetos sociais na periferia de São Paulo. Mantém uma empresa que lida com iniciação esportiva e está escalada para ser comentarista da TV Globo na cobertura dos Jogos do Rio. Há seis anos na capital paulista, na última quinta-feira Daiane carregou a tocha olímpica em Porto Alegre, sua cidade natal, que passa tempo sem visitar ("às vezes, bate uma saudade muito grande"). Só as visitas dos pais Moacir e Magda amenizam a distância. Daiane acredita que a Olimpíada do Rio vai redimir em parte o orgulho dos brasileiros, com o moral um tanto desgastado pela recessão, embora avise: não espera que as medalhas salvem o humor da nação. Fez um outro aviso: aos 33 anos, acha que está na hora de ter um filho.
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Você largou a ginástica artística depois da Olimpíada de Londres, em 2012. Agora, quatro anos depois, às portas dos Jogos do Rio, não bate uma adrenalina clamando por uma grande competição?
Por competir? Eu sempre tenho vontade de competir. O problema é treinar (risos). Se desse para competir sem treinar... Mas é impossível. Se você me pergunta se eu tenho saudade, eu tenho, sim. Mas não todos os dias. Não mais para fazer ginástica como profissão.
Qual foi a última vez que você fez o duplo twist carpado?
Em Londres (risos). Depois, não mais. É porque o duplo twist é elemento mais complexo, teria que levar mais tempo de treino, até para não me machucar. Quando eu vou hoje ao ginásio, faço coisas mais simples, ginástica normal. Não me atrevo a acrobacias tão difíceis como o duplo twist carpado, muito menos o esticado. O que eu faço é rodante flic, rodante flic pirueta, rodante flic duplo, coisas simples.
Como está sua vida? Quais os planos de vida?
Desde o ano passado, eu estou solteira. Mas sinto que o meu relógio biológico mostra que é hora de ter um filho. Falta o pai (risos). Como filho é um assunto muito sério, a escolha do companheiro tem que ser bem cuidadosa. Agora, minha vida mudou muito. Antes eu passava horas em intensas atividades físicas e, a partir do momento em que essa prática diminui para uma ou duas horas, estou como qualquer pessoa, ganhando peso. Normal. É assim mesmo. Com a parada dos treinos, alguns até entram em abstinência, não praticam nada, até se encaixar em uma atividade que lhes dê prazer. Hoje eu faço academia, corro, ando de bicicleta e também gosto de teatro, musical, exposições de arte. Deve ser o meu lado de gaúcha, não é?
Não ficou a sensação de que as lesões a fizeram parar de competir muito cedo (aos 29 anos)?
Na verdade, eu não parei por causa de lesão. Parei porque não queria mais treinar mesmo (risos). Eu treinava desde os 11 anos, em média oito a nove horas por dia, de segunda a sábado. A parada sempre é mais complicada, ao atleta é muito difícil se ver fora, a gente tem que se programar bem antes. Depois dos Jogos de Pequim (2008), eu comecei a me planejar para deixar de competir assim que terminasse a Olimpíada de Londres (2012). Eu me preparei psicologicamente. Não foi fácil no início. É preciso pensar o que fazer depois da carreira, aí dá para se manter bem.
O ex-atleta não costuma programar o que fazer depois da carreira?
Em geral, não. Agora o COB (Comitê Olímpico Brasileiro) tem investido em programa pós-carreira com atleta que pensa em outra atividade, mas acho que são poucos. Tem gente que só fez esporte na vida e não consegue ver o que próprio esporte trouxe de benefícios que facilitem uma outra carreira, seja como comentarista, educador físico, treinador, ou com psicologia e medicina esportiva.
Se você ainda estivesse competindo, qual seria o seu nível de ansiedade neste momento, a um mês do início dos Jogos dentro do seu país?
A ansiedade sempre aumenta diante de uma grande competição. Agora, numa Olimpíada e dentro de casa, ela fica muito maior. Nessa hora, cresce a expectativa por querer fazer melhor diante de sua torcida, de seu país, é um orgulho próprio. A rotina de treinos até não muda muito, o que altera é a inquietação, o nervosismo aumenta muito, sim.
Você acha que vai ser alto o nível de pressão por resultado em casa? A Seleção de futebol não lidou bem com a tensão da Copa no país.
Eu espero que os atletas encarem de uma forma positiva. É preciso entender que não é uma pressão, é torcida para que as coisas deem certo. É preciso ver que há pessoas apaixonadas pelo esporte, e que os atletas se sintam motivados, não pressionados. Ah, se não der certo, tudo bem, pode acontecer. Porque isso é esporte, que é inconstante. A gente não sabe o que vai acontecer. Por isso, a gente é campeão até a próxima competição. Mesmo o favoritismo é só uma propensão para determinado resultado, mas também pode não acontecer.
Como você avalia os preparativos para os Jogos do Rio?
A gente tem visto alguns eventos-testes muito bem apresentados e outros em que ainda falta algo para estar bem alinhados. Mas, como há um tempo até os Jogos em agosto, acredito que vai ser um grande acontecimento e, olha, o Brasil é o primeiro país da América do Sul a receber uma Olimpíada – isso não é pouco. Temos de estar felizes com isso, e o que a gente mais espera é que seja uma festa.
Existe no país expectativa suficiente para acolher esses Jogos?
Eu espero que a Olimpíada dê uma injeção de ânimo no brasileiro e mostre que somos um país de superação. A gente passou por situação parecida na Copa do Mundo. Naquela época, o Brasil também estava complicado e a Copa trouxe uma alegria a mais – menos o resultado final de campo, que não seja nem parecido (risos). Acho que a gente pode fazer um espetáculo não só de excelência em organização do evento, mas em termos de resultados. Todos trabalhamos bastante, não só o segmento esportivo direto. Há muita gente empenhada em fazer uma festa para os brasileiros e para o mundo.
O brasileiro depende dessa Olimpíada?
Esses Jogos serão um grande incentivo ao brasileiro. Mas acho que as pessoas dependem de muitas outras coisas para buscar a felicidade plena, não só da Olimpíada. Nós vamos mostrar ao mundo que, apesar das dificuldades do país, na economia e na política, a gente pode, sim, promover um evento de porte, com toda a competência. Também não dá para se enganar e colocar todo o peso da esperança dos brasileiros em cima dos resultados dos Jogos. Todos nós estamos reféns da situação do país, que respinga na vida real, na segurança, na economia e também no esporte. Vai ser muito bonito acompanhar o orgulho dos atletas com a camisa do Brasil, mas a gente sabe que a felicidade de uma nação depende de muitas outras providências.
É possível garantir o padrão de qualidade de Pequim-2008 e Londres-2012, os dois últimos Jogos de que você participou?
Podemos, sim. Pelo que vejo, temos todas as condições de promover uma competição como Londres fez, como Pequim fez.
Qual é a sua atividade atual?
Tenho um projeto social em São Paulo que se chama Brasileirinho e trabalha com ginástica artística dentro do CEU (Centro de Educação Unificada) na comunidade de Paraisópolis (na zona carente ao sul da capital paulista). Vamos expandir no segundo semestre para a Vila Olímpica de Sampaio, no Rio de Janeiro. É um trabalho muito gratificante. Também faço um comentário na TV Globo e tenho uma empresa em São Paulo que lida com esporte, iniciação esportiva, palestras e workshops. Trabalho todo o segmento do esporte educacional, eu sou formada em educação física, mais iniciação esportiva, parte de treinamento e eventos, tanto no esporte quanto em educação.
O que você vai fazer durante a Olimpíada?
Vou fazer comentários na cobertura da TV Globo, que montou um time de ouro com 11 ex-atletas, cada um na sua área. Na verdade, já comento desde 2014.
Qual a chance de a ginástica artística conquistar medalha?
A gente tem muita chance de conquistar medalhas, principalmente no masculino. O Arthur (Zanetti) vai defender o título olímpico nas argolas. Ele pode se tornar o primeiro atleta a obter duas medalhas nesse aparelho. O Arthur Nori também está muito bem na barra fixa, mais o (Sérgio) Sasaki. O Diego (Hypolito) pode beliscar alguma coisa. E no feminino há a Flávia Saraiva muito presente, com resultados recentes. Ela e a Rebeca Andrade ganharam medalha agora em Anadia (etapa da Copa do Mundo em Portugal) – e há as experiências da Daniele (Hypolito) e da Jade (Barbosa), além da Lorrane (dos Santos). E pela primeira vez vamos apresentar duas equipes completas nos Jogos – e isso já é uma conquista. Não há momento mais apropriado do que este para a ginástica artística acontecer aqui no Brasil.
A Daniele Hypolito (31 anos) e a Jade Barbosa (25) deram contribuição recente e decisiva na hora de garantir a equipe feminina na Olimpíada. Experiência faz diferença?
A gente tem de valorizar a participação delas, não só pela idade, mas pelo que podem contribuir. A Daniele, por exemplo, vai para a quinta Olimpíada, garante tranquilidade ao resto da equipe, isso é importante na hora da tensão. É o mesmo caso da Jade, é preciso dar segurança às outras três meninas (Rebeca, Flávia e Lorrane). Não imagina como isso tem valor.
Como ficaram as relações com o seu antigo técnico, o ucraniano Oleg Ostapenko?
Sou apaixonada pelo Oleg, não só pelo excelente técnico que ele é, mas pela pessoa. A última vez que nos falamos foi antes de ele embarcar para treinar a Bielorrússia. Ele agregou muito à ginástica brasileira e muito do que ainda acontece aqui é graças a ele. Ele não vem agora com a equipe ao Rio, o trabalho é para Tóquio-2020. Tenho certeza que dali vão sair novos frutos, porque ele é excelente treinador e muito exigente. É claro, a gente passou por momentos difíceis, mas é assim mesmo. Para crescer, é preciso superar as horas mais duras.
Como é a criança com a qual você trabalha na periferia de São Paulo?
Ela é a mesma de todas as regiões carentes. É a criança de vulnerabilidade maior, que às vezes não é bem entendida, não ganha atenção suficiente em casa, ou porque o pai trabalha demais ou porque o responsável não dá atenção. É uma criança carente de afetos, mas também sem oportunidades novas.
Você que foi descoberta fazendo ginástica em uma pracinha em Porto Alegre falou recentemente que a criança não deve ter medo de tentar. Como é isso?
Na verdade, o que quis dizer é que a gente tem muito medo de tentar algo novo. Não é só na ginástica, vale para todas as áreas. Às vezes uma criança, comparada a um adulto, tem menos medo de arriscar, de enfrentar o constrangimento de tentar algo que não sabe fazer em momento de insegurança e de dúvida. Será que eu vou me machucar, que alguém vai rir de mim? Essa lição vale também ao adulto, de se arriscar em esporte, em uma área diferente.
A criança hiperativa é a ideal para a ginástica?
Sim, porque é impulsiva, vai sem medo, às vezes até sem noção. Lido muito com isso. Quem trabalha no meio costuma dizer que o pai da criança que corre, pula e não para quieta e tem energia a mais deve mandar para nós. A gente gasta a energia dela no ginásio.