Apresentar Ruy Carlos Ostermann em um texto breve é impossível. Não cabe. Falta espaço. São tantos livros publicados, tantas Copas do Mundo interpretadas, tantos Gre-Nais traduzidos, tantas colunas esculpidas em ZH, tantos milagres na mediação do Sala de Redação, são tantas as suas facetas e versatilidades que o melhor a fazer é arriscar um resumo capaz de sinalizar de quem estamos falando.
O jornalismo esportivo gaúcho era um antes dele, e passou a ser outro completamente diferente para sempre depois que o professor de filosofia se atreveu a buscar o significado intrínseco de cada gol, ocupação de espaço ou canelada do zagueiro. Nessa entrevista, que tem a pretensão de abordar as variadas dimensões de um grande homem de comunicação, navegando pela política e militância cultural, vertentes cruciais em sua vida, Ruy nos brinda com o estilo que marcou época, no qual uma frase ou palavra aparentemente fora do lugar fazem todo o sentido, conduzindo com suavidade o leitor pela mão até o ponto final. Aos 81 anos, o professor está firme e forte, os radares ligados ao mundo que o cerca, como você poderá perceber nestas páginas.
De que maneira o futebol entrou em sua vida?
A rigor, muito cedo. Se tento me lembrar as primeiras manifestações que ele me permitiu, foi talvez em casa, no pátio. Tendo ganho de presente uma bola de um tio, suponho, a chutava insistentemente contra a parede. Chutava e rebatia. Assim me tornei zagueiro (risos).
Então vem do pátio de casa o primeiro contato com o futebol.
Se não é este o início exatamente, certamente é o momento em que começa a tomar forma para mim. A partir daí, o futebol gradativamente vai entrando em minha vida. Passei a associá-lo a outras pessoas e circunstâncias. Isso era São Leopoldo. Todos se conheciam e ficavam sentados na calçada.
O senhor cogitou se tornar jogador?
Joguei nos juvenis do Nacional, de São Leopoldo. Depois, no Aimoré. Mas não lá em cima! Tudo lá embaixo, nunca no time de cima. A bola que me fez jogador e tomou muito tempo na juventude foi outra, a de basquete. Até cheguei a integrar a seleção gaúcha, vejam só.
E a paixão pela comunicação?
Meu pai tinha um café muito frequentado. Eu ficava andando pelas mesas, conversando com as pessoas. Aprendi a conversar, ouvir, falar. Passava horas batendo papo, e creio que ali o ato de se comunicar com as pessoas ganhou os primeiros contornos. Eu gostava de registrar esses momentos escrevendo.
Como o senhor começou a trabalhar na imprensa?
Dois amigos, Luiz Engel e Antônio Carlos Porto, jornalista bem conhecido, também amigos de meu pai, me disseram que a Folha da Tarde esportiva estava passando por mudanças e que eu tinha condições de trabalhar lá. Eu disse a eles: "Mas vem cá, nunca entrei numa redação de jornal...". Eles insistiram: "Vai lá!". Eu fui. Eles me apresentaram ao seu Maneca, secretário de redação da Folha Esportiva e da Folha da Tarde. Estava chegando um jogador ao aeroporto e o jornal precisava de uma pequena entrevista com ele. Meteram-me dentro de um jipe, com fotógrafo.
Jipe?
Sim, jipe. Usávamos jipe (risos). É o passado, te segura aí (mais risos). Conversei com o jogador, do qual não lembro o nome, acho que era paulista, e voltamos para a redação. Seu Maneca disse: "Ótimo, senta lá e escreve". E agora? Eu nunca tinha sentado em frente a uma máquina de escrever! Mas não podia ser derrotado ali, antes do texto. Coloquei papel e carbono e comecei a catar dedo. Fiz um texto possível e entreguei ao seu Maneca já me desculpando. Fiquei por ali esperando que ele lesse, imaginando que nunca teria a menor chance numa redação de jornal, que minha primeira experiência seria um desastre. Daqui a pouco ele me chama e diz: "Está bom". E, no dia seguinte, o texto estava publicado. Sem assinatura, mas publicado. Que maravilha! Seu Maneca me pediu para voltar. Assim eu comecei.
Foi o seu primeiro trabalho?
Sim, na Folha Esportiva. Eu morava em São Leopoldo e vinha a Porto Alegre diariamente.
E depois?
Aí comecei a me definir. Sempre tive alguns paralelismos na minha vida. Trabalhava no jornal e estudava filosofia nessa época. Por isso, muito cedo meus colegas me apelidaram de professor.
Quem primeiro lhe chamou de professor?
Sinceramente, não lembro. Eu era uma figura muito estranha na redação sob este aspecto (pausa). Mas só sobre esse aspecto (risos). Eu era um sujeito da universidade, estudante de filosofia, que ali escrevia sobre futebol. Aparentemente, não tinha nada a ver. Mas era uma de minhas versatilidades. Tenho orgulho de ser um sujeito versátil. Faço várias coisas relativamente bem, não necessariamente numa só direção. Dei aulas de filosofia inclusive na faculdade e continuei trabalhando em jornal.
Por que o senhor quis estudar filosofia?
Eu tinha uma virtude incomum até hoje: eu lia. Gostava muito de ler. Consumia ficção. A leitura me despertou o prazer da reflexão, ou seja, como as coisas podem ser reelaboradas, adquirir outro sentido, aumentar de tamanho e ter significado para outras pessoas também, não só para si. Soube desenvolver essa qualidade relativamente bem, o que me ajudou a abrir muitas direções. A filosofia encaixa aí. Não via, e continuo não vendo, incompatibilidade alguma em filosofia e futebol. Tanto em um quanto noutro tu buscas algo significativo, que tenha sentido, algo que seja a própria explicação de existência das coisas. Era nisso que eu me empenhava. E foi o que me fez chegar perto daquilo que eu achava que fosse uma relação significativa com o mundo, com as pessoas, com os amigos. Algo significativo, de valor.
Então o senhor passou a traduzir o jogo, os jogadores, o dia a dia do futebol sob esta lógica.
Exatamente. Muito cedo consegui fazer também um texto mais elaborado, o que me ajudou bastante neste sentido.
O senhor disse, certa vez, que sua grande paixão é o texto, mesmo sendo um homem de rádio e também de televisão. Por quê?
Eu disse isso? (risos).
Disse, ao jornalista Renato Mendonça, curador do livro "Ruy de Todas as Copas".
Não quero ser injusto, mas é sim. Não quero ser injusto porque adoro conversar. E, portanto, faço muitas palestras. Também gosto de observar, de prestar atenção, de me envolver com o que faço, de tomar posição. A maioria das pessoas passa pela atividade sem ter nela algum ponto de referência a respeito de que explicação tem para aquilo tudo. Sempre procurei a tal da explicação. Por isso fui para a filosofia. E também por isso mergulhei no texto.
O texto era o seu exercício dessa visão de mundo?
O texto tem uma qualidade superior, e de novo estou cometendo injustiças com minhas outras atividades, mas enfim. O texto, você pode reiterá-lo. Pode retomá-lo a cada instante, ele não é dito e cai fora. A frase, por exemplo, tem contra si o fato de que ela ressoa, é bonita, tem sentido, diz respeito ao que as pessoas estão fazendo e pensando, mas a frase passa. O que é escrito, não. Fica lá, para você prestar atenção, recuar, avançar, até deixá-lo de lado e depois retomá-lo com outro significado. Não o contrário do original, mas uma amplificação. Você faz descobertas sobre si mesmo através do texto. E essa me parece a ser a grande qualidade do jornalismo. Busco sempre uma frase de intuição, para depois intelectualmente persegui-la com os elementos do jogo, no caso do futebol. Lembro de um zagueiro, de nome Pipoca, que no primeiro lance do primeiro jogo chutou a bola lá no alto, onde nada acontece. Parto deste "nada acontece" e sigo em frente, dispondo dos elementos factuais.
O senhor concorda que a sua grande contribuição ao jornalismo esportivo foi esta capacidade de enxergar no jogo de futebol todo um universo a ser explorado?
Se deixo alguma contribuição, é essa mesmo. Você tem mais do que um espetáculo, um jogo, uma emoção desencadeada. Você tem, na verdade, um fato concreto e real que envolve as pessoas e que muitas vezes é o significado básico do que elas podem fazer. Esta é a minha grande satisfação intelectual. Os Encontros com o Professor são um prolongamento dessa ideia.
Como surgiu o Encontros?
Sentei com minha filha (Cristiane, jornalista) e pensamos em como reunir essas minhas facetas de homem de comunicação a serviço da coletividade. E chegamos ao Encontros, nesse formato talk show, uma maneira de conversar com pessoas relevantes da área cultural, fazendo-as falar sobre si da maneira mais natural possível, pois a tendência é a gente se policiar ao tratar de si mesmo. O Moacyr Scliar, certa vez, ao final de uma conversa no programa diário sobre cultura que tinha na Rádio Gaúcha, a rigor um embrião dos Encontros, me abraçou e disse que nunca havia se revelado tanto. É esse o espírito do Encontros, desde 2004.
A cultura é uma militância para o senhor?
A tendência é simplificar, na falsa impressão de que as pessoas querem isso. Mas não. As pessoas querem qualidade. O programa de entrevistas com artistas e de gente da área cultural era no meio da tarde, na Gaúcha. A audiência sempre me surpreendeu. Vivemos uma crise aguda nas comunicações. As pessoas estão buscando informações em outros lugares. Veio o online, com uma informação mais rápida, mais simples. O que era pensamento, construção, elaboração, desdobramentos, isso se perdeu. Não digo que se perdeu para sempre, mas é algo que temos de recuperar.
O ex-governador e jornalista Antônio Britto disse que tirá-lo da Guaíba, como a Gaúcha fez em 1978, teve no mercado jornalístico da época o impacto de o Grêmio tirar Falcão do Inter nos anos 70 ou o Inter roubar Renato do Grêmio na década de 1980.
E ele fez parte disso (risos). Eu havia pedido demissão da Folha da Manhã, onde era o diretor de redação. Tentamos fazer um jornalismo mais progressista, menos conservador, talvez até engajado, também de investigação. Aprofundávamos tudo. Trouxe o Caco Barcellos, o Luiz Fernando Verissimo. Muita gente boa. Mas a censura foi minando aos poucos o trabalho e, diante de algumas demissões na equipe com as quais eu absolutamente não concordava, não restou alternativa a não ser pedir demissão. Mas tenho muito orgulho daqueles dias na Folha da Manhã.
Então veio o desafio de virar o jogo do rádio na Gaúcha.
E que desafio! Foi o maior da minha carreira. A Guaíba era uma emissora consolidada e respeitada, à época com altas taxas de audiência. Contrapor isso era muito difícil. Foi uma façanha, mas conseguimos até com alguma rapidez, em três ou quatro anos, também ajudado pelo processo lento de decadência da Caldas Júnior. Veio depois o Lauro Quadros (comentarista), e também o (narrador Armindo Antônio) Ranzolin. Virou uma seleção (risos).
Como aconteceu?
A Copa de 1978 foi essencial no processo. Com um evento desses você mobiliza a equipe com mais facilidade. Estivemos em todos os acontecimentos do Mundial, com repórteres em todos os estádios. Eu não queria apenas o modelo locutor-comentarista-repórter. Eu queria um plantão atento no estúdio. Hoje isso é banal, mas lá atrás não tinha. Exigi uma cobertura ampla, total, com reportagem atenta a todos os aspectos deste grande evento chamado Copa do Mundo. Nós ouvíamos o ouvinte nas ruas, no Brasil e na Argentina. Um grande defeito de vida é não prestar atenção nas pessoas. Tenho muito orgulho do que fizemos juntos, a equipe toda, na Rádio Gaúcha.
E a sacada de chamar o Falcão para ser comentarista?
Eu achava que não era justo o Falcão não ir naquela Copa. Ele era um talento raro para jogar futebol. Foi um equívoco grave do técnico Claudio Coutinho não convocá-lo, ainda mais levando Chicão, agora veja só, em seu lugar. Havia um sentimento de revolta muito grande no Rio Grande do Sul. Então decidimos, com esse gesto, fazer uma espécie de desagravo ao Falcão.
É verdade que o senhor não exigiu que ele falasse apenas no microfone da Gaúcha, com exclusividade?
Ah, eu o deixava dar quantas entrevistas quisesse. Era justo pelo que ele significava, e era bom tanto para ele e para nós. Fazia parte da estratégia. Era o nome da Gaúcha sendo citado no Brasil inteiro.
E a política: foi mais difícil ser deputado estadual, titular da pasta de Ciência e Tecnologia ou secretário da Educação?
Sou muito grato pelo que a política me ensinou em oito anos. Você aprende que não pode, jamais, se isolar. Você tem que considerar o outro e se readaptar. Este exercício exige talento. Você tem certeza, mas às vezes tem de abrir mão. Tem de revisar. A concordância é a chave. Aceitei o convite do Ibsen Pinheiro e do Pedro Simon para concorrer a deputado estadual pelo PMDB. Eleito governador, Simon me chamou para criar a secretaria de Ciência e Tecnologia. E depois, para enorme tarefa de comandar a Educação.
Hoje vemos escolas ocupadas pelos estudantes e velhos problemas repetidos, como salários baixos para os professores. Há uma saída?
Não há resposta simples. O essencial é ter professores bem pagos, com estrutura para lecionar. Mas a verdade é que não temos nada disso. Nossos problemas se repetem e decorrem da ausência de investimentos. Não tenho dúvida alguma de que o Brasil só pode ser pensado a partir daí. Não há outra solução.
O senhor é a favor do impeachment da presidente Dilma?
O impeachment não resolve. Ela seria substituída pelo vice, e já sabemos que ele também tem problemas. Se não for o Michel Temer é o Eduardo Cunha, e deste nem precisamos entrar em detalhes. Não temos a quem recorrer, como no passado, nas crises políticas. Quem media? A falta de lideranças com credibilidade é o nosso problema. As pessoas de bem estão se afastando da política cada vez mais ao depararem com este noticiário terrível. Enfrentamos uma crise de representatividade.
O senhor tem acompanhado Grêmio e Inter?
Sim. O Grêmio do Roger chegou muito perto, e com regularidade, o que é o mais difícil, desse conceito de futebol novo, moderno e total. No Inter as dificuldades são maiores. Houve muitas mudanças, lesões, troca de técnico. Mas pode e deve melhorar, se tiver um ano sem tantas mexidas.
O que a Copa do Mundo representa para o senhor?
Começa que ela é o ponto culminante de todas as realizações no futebol. A Copa tem um valor específico. É a tentativa de se aproximar daquilo que há de mais importante no futebol. Um campeão do mundo é sempre incontestável. É afirmativo e valioso. Isso se dá porque a Copa é agregadora. Ela fortalece as relações entre as seleções mais importantes, habilita o surgimento das emergentes e, no país onde é realizada, instiga um entusiasmo incomum, que semeia frutos. Por tudo isso, a Copa sempre aponta o rumo. Estamos em um momento de mudança significativa do campo de jogo, aliás.
Em que sentido?
Por força dos sistemas de marcação e, sobretudo, da ocupação de espaços, na verdade você tem um time de um lado e outro inteiramente de outro. E, à medida que eles se movimentam, as coisas começam a acontecer. Tomemos um exemplo: o genial Nilton Santos, lateral-esquerdo. Flávio Costa pedia para ele não subir. Era perigoso avançar. Hoje, um homem que joga pelo lado e não é capaz de ocupar o campo todo não faz sentido. Essa mudança é extraordinária e dela decorre a transformação de todo o futebol, que caminha nessa direção sem volta. O futebol permite esse alcance: você pode promover uma realização coletiva de grande qualidade, que mude as pessoas e a vida da pessoas.
Quem está mais dentro dessa transformação? Há algum time especificamente?
Os alemães. E o Barcelona. O Barcelona joga sempre com 11 em todos os momentos da partida. O goleiro também é um zagueiro. Ocupa o espaço rigoroso da sua área, mas quando o time sai e espaços generosos aparecem, ele os ocupa. Isso requer, do goleiro, uma visão de mundo extraordinária. Não tínhamos isso há 10 anos atrás.
E no Brasil?
Gostei muito do Corinthians do Tite no Brasileirão. Ele avançou nessa direção, com uma forma de ocupação de espaços maravilhosa e uma insistência comovente no desarme e no ataque.
O futebol está mais ofensivo e, portanto, se preocupando menos em defender?
Não, não. Pelo contrário. Veja, por exemplo, o Barcelona e seus três atacantes, mais Iniesta vindo de trás. Eles exercem suas funções de ataque de formas variadas, mas acabam corporificando um processo defensivo com bastante comprometimento. E como eles se desfazem de um movimento ofensivo e entram noutro, defensivo, imediatamente. Muito do sucesso do Barcelona está na arte de saber se defender.
*ZHESPORTES