O coração de Alcides Edgardo Ghiggia parou neste 16 de julho. No dia que em que se revive o 65º aniversário do Maracanazo, o dia que o Uruguai calou o estádio carioca e levou para Montevidéu a Taça Jules Rimet na Copa do Mundo de 1950, o autor do gol que marcou a história do futebol morreu em Las Piedras. Com ele, foi-se a última testemunha em campo daquela partida: Ghiggia era o único sobrevivente.
Aos 88 anos, Ghiggia sofre ataque do coração e morre no Uruguai
É estranho o sentimento brasileiro com relação ao seu mais íntimo carrasco, o homem que destruiu a badalada Seleção Brasileira. Não se destila qualquer gota de rancor pelo fato de Ghiggia ter emudecido mais de 200 mil fanáticos na final daquele Mundial, o primeiro disputado no país do futebol.
Em entrevista ao site da Fifa, Ghiggia fala sobre Copa de 2014: "Daria a vida para ver o Uruguai campeão"
As ondas dos radiões de válvulas transmitiram ao Brasil inteiro uma das frustrações mais pesarosas já sofridas em nossos gramados, e o algoz dessa dor surda que se entranhou em décadas na nossa história é justo esse senhor Ghiggia, que jamais se vangloriou disso. Ao contrário, dizia que aquela derrota ensinou o Brasil a vencer - e foi o que aconteceu. Pois agora, o seu Ghiggia morreu, aos 88 anos, e o brasileiro se sente compelido a reverenciá-lo. Morreu o avô uruguaio que nos deu uma lição no Maracanazo.
Ghiggia pede desculpas a Pelé por Copa de 50
Não foram divulgados detalhes de sua morte. Meios de comunicação uruguaios apenas confirmaram a informação dada pelo filho do ponteiro. O jornal El Observador lembrou de sua "salud de fierro". Em 2012, o ex-atacante sofreu um acidente de trânsito violento, que resultou em politraumatismo. Chegou a ficar em coma depois depois que seu veículo bateu em um caminhão numa rodovia perto de Montevidéu, a cidade onde nasceu em 22 de dezembro de 1926. Sua mulher e sua cunhada, ambas de 39 anos, também estavam no veículo, mas não sofreram ferimentos tão graves. O ex-jogador sofreu fraturas no joelho, no tornozelo e em um dos braços e esteve internado em um Centro de Tratamento Intensivo com os pulmões comprometidos e respirando por aparelhos, embora não houvesse lesão cerebral.
No ano 2000, por ocasião dos 50 anos da conquista uruguaia no Maracanã, Ghiggia esteve no Rio com companheiros daquela jornada de 16 de julho de 1950. O goleiro Máspoli e os zagueiros Tejera e González estiveram com ele. Ghiggia, como sempre, esquivava-se de comentar sobre o gol fatídico. Mas a imprensa brasileira o obrigou a relembrar detalhes. O país já contava vitória. Dizia-se que a final da Copa entre Brasil e Uruguai era só um protocolo de 90 minutos. Que a Seleção dos craques Zizinho, Jair Rosa Pinto e Ademir Queixada, que vinha varando goleadas na Copa, jamais perderia. Afinal, era o Mundial do Brasil. O Maracanã fora construído para aquela glória. Políticos invadiram o ônibus da delegação a caminho do estádio, tomaram de roldão o vestiário com os jogadores e, como todo o brasileiro, comemoraram antes do jogo.
O Uruguai seria apenas coadjuvante. Quando o jogo se iniciou, o Brasil parecia ensaiar mais uma goleada. Mas nada acontecia. No início do segundo tempo, o brasileiro Friaça marcou o 1 a 0. Não havia para ninguém, a taça do mundo seria nossa. Aí Ghiggia cruzou e Schiaffino empatou. Que atrevidos esses uruguaios. A 11 minutos do final, o ponta-direita Ghiggia enveredou sobre a área, deixou Bigode e Juvenal para trás e chutou no vão de centímetros que havia entre o poste e o goleiro Barbosa. A 11 minutos do final!
A história se encarregou de trucidar os nomes de Barbosa, Bigode, Juvenal, embora o próprio Ghiggia os absolva:
- Eles fizeram tudo certo, eu é que fiz o improvável.
Além do mais, a cegueira do favoritismo não nos deixou ver que os uruguaios haviam sido campeões olímpicos dois anos antes, que o supertime do Peñarol era a base da seleção, incluindo Ghiggia (que depolis jogaria no Roma e no Milan).
A última homenagem ao ídolo foi feita pelos uruguaios após voltarem ao Mundial no Brasil, depois de eliminar a Jordânia na repescagem. Em 2013, o Estádio Centenário reviveu o gol de Ghiggia e, pela primeira vez, ele escutou a torcida comemorar seu gol. Porque até aquele dia, tudo o que ouvia depois de a bola chegar à rede era o silêncio ensurdecedor.
Agora, finalmente, juntou-se aos outros dois homens que calaram o Maracanã com um gesto: Frank Sinatra e o Papa João Paulo II, como ele mesmo lembrava.