O carisma, a simplicidade e a luz do tenista tricampeão de Roland Garros e ex-número um do mundo, Gustavo Kuerten, são conhecidos além dos limites do Brasil. Mas só frente a frente com o ídolo para compreender sua grandeza. Na sala de troféus do QG dos Kuerten, o centro comercial batizado de Aldo em homenagem ao pai, no bairro Santa Mônica, Guga falou durante pouco mais de 40 minutos de conversa e demonstrou ter plena consciência do seu novo papel: ativista social em defesa da educação. O Instituto Guga Kuerten é seu xodó, motivo de orgulho e até de emoção. Ele se arrepia ao falar da alegria em tirar jovens das ruas graças ao esporte. Sabe que nem todos serão campeões. Mas também tem a certeza de que está talhando cidadãos de bem. O tempo nas quadras passou, mas a trajetória do Gustavo - coração de menino - está só começando.
Blog do Rafael Martini
O reconhecimento como atleta mundial é notório, mas o que te motiva hoje em dia ao sair da cama? Qual o seu desafio?
Eu fui criado para visualizar sempre um desafio maior e dentro dele ter diversos objetivos. Atualmente, o que move mais as minhas sensações são de uma certa forma ainda contagiar as pessoas, isso no próprio processo do livro (Guga, um brasileiro, lançado em 2014), ficou muito claro que é uma vocação minha. O esporte me ajudou a chegar a centenas de pessoas, mas conseguir trazer um sorriso, uma autoestima, um orgulho, uma sensação de bem-estar para uma pessoa é formidável.
As pessoas se identificam com o livro?
A gente tem um feedback impressionante. Minha iniciativa no livro é trazer a história para perto do dia a dia de cada um, não relacionada ao tênis, matchpoint, game, break point. Isso é distante da realidade das pessoas, mas sim entender que existia um desafio que nem eu conseguia enxergar. Eu fui encontrando pessoas no caminho que me auxiliaram a visualizar uma possibilidade totalmente improvável. A partir daí, essa construção é mais simples. O sonho, às vezes, é gigantesco, mas sempre vai depender de ações pequenas. O esporte ensina muito a prestar atenção no aqui e agora, valorizar o momento que nós estamos vivendo, que cada vez é mais difícil por causa da internet, do telefone. É difícil manter um senso de comunhão e o esporte não dá outra opção. Ou você entra na quadra de tênis e tenta deixar a cabeça pensando igual um maluco três, quatro horas. Aí vem música na cabeça, e vem um cara que está falando na torcida. Se o grau de profundidade é realmente por completo, a gente consegue entrar na cabeça do outro e plantar um vírus e dar um bug do milênio. Mesmo um cara que chegou lá em cima é raro conseguir ficar por inteiro, é um desafio contínuo ficar por inteiro.
Alguém um dia pegou na tua mão, acreditou e te ajudou no esporte. Onde entra a educação?
A minha vida foi feita assim, esporte, educação e família. Aí vem uma série de embasamentos, de solidificações que a pessoa vai precisar dependendo dos estágios que quer avançar ou do tamanho do seu sonho, que às vezes é necessário ter amigos, a família, um apoio para conseguir alcançar. Teve um momento da minha vida que foi determinante para permitir o sucesso no tênis que foi a perda do meu pai em uma quadra de tênis. Até os 14 anos isso era um dilema. Eu questionava o Larri: "O que adianta ganhar ou perder? Não vai trazer meu pai de volta se ganhar ou perder". Ali teve que já fazer ajustes para que aquilo virasse o santuário que se tornou, principalmente dentro da quadra, que quando eu estava lá, sentia meu pai próximo. E essas vidas fizeram total diferença, porque sozinho é muito difícil de caminhar distante.
Qual a mensagem que você quer passar?
No livro eu falo que aquelas histórias podem ter acontecido com qualquer um, tanto as tristes como as felizes. Vivi diversos pepinos, um ano antes de me tornar campeão de Roland Garros, a gente estava migalhando ao redor do mundo sem patrocínio, desesperado. Na minha cabeça não entrava a sensação de desistir, mas a dúvida era muito grande. Até hoje tem que aceitar que nem tudo está nas nossas mãos, nem tudo está sob controle. Isso ajuda muito, eu sou humano, eu vou errar também, acontece, mas é interessante eu fazer, dar um passo adiante, tentar criar minhas convicções, buscar uma interpretação das coisas, do mundo, do meu esporte, da minha vida, para tomar decisões mais profundas. E, no meu caso, uma coisa que é essencial e determinante, é que eu tive oportunidades. Não foi nada fácil, foi até distante, foi complexo o acontecimento, mas se meu pai não fosse fanático por tênis até meus sete anos, já tinha acabado ali, quando ele morreu. Então existia uma possibilidade, todo mundo no sufoco, mas eu recebi essa oportunidade e nosso desafio na área social no Instituto (Guga Kuerten) é tentar trazer chances decentes de vida. A gente encontra e lida com os meninos aqui em Florianópolis, que muita gente pensa que é tranquila. Uma das melhores cidades para se viver, sem sombra de dúvida, mas existem aqui famílias que não têm chances decentes de vida, isso que é completamente inaceitável para os dias atuais.
Essa é a sua nova bandeira, tentar mostrar esse universo que o esporte pode proporcionar em termos de cidadania?
Nós utilizamos como via de acesso o esporte, porque até mesmo é a legitimidade da minha história e, além disso, cada vez mais eu percebo que há muita sintonia entre o brasileiro e o esporte. Você joga bola na rua, a criança vem sorrindo já, ela esquece que está passando fome, os pesadelos. Tem casos que atendemos em Campos Novos de crianças de 11 anos de idade que nunca tinham visto uma bola na vida. Daí as chances de escolher um caminho que leve para a criminalidade é grande.
Nós tivemos Zico, Oscar, Senna, Hortência e Guga. Hoje não falta no esporte um ídolo que tenha carisma e influencie positivamente?
O ídolo, o atleta, é um ícone, um símbolo. No Brasil, há um fator inspiracional ainda maior, porque as dificuldades para construir esse ícone do esporte mundial são totalmente adversas, mas não dependem só disso, de uma grande transformação. O atleta vai dar o estopim, talvez demore 10, 15 anos e não resolva a vida de ninguém, pode servir para dar um sorriso de dois dias, mas os principais problemas são básicos, da educação, da comida, de ter uma decência na vida, de limpeza, de saúde. Acho que depende mais do Brasil, da capacidade de devolver mais para a população. Esse é o tipo de carência que eu vejo que nós sofremos ainda. O Brasil avançou em vários quesitos, principalmente por essa condição econômica que aconteceu nos últimos 10, 15 anos, mas ainda é inadmissível ver que algumas pessoas são completamente abandonadas. Eu não acredito que a cada cem pessoas, uma vai escolher ser criminoso. Ele vai porque ele não tem uma chance, não sobra nada, daí vem alguém dar uma bala, dar um chocolate, dar um abraço e aquele caminho se abre e ele enxerga outra alternativa.
E se no trabalho você conseguir salvar uma vida já está valendo, né?
O Instituto tem um retorno de milhares de vidas que, no dia a dia, nós lidamos com esse tipo de estímulo. Aí a figura do ídolo é fundamental porque para as crianças ainda trazem uma inspiração a mais, para a família principalmente a confiança. Hoje em dia é tão traumático que você quer ajudar e a pessoa já desconfia 'opa, o que tu tais querendo?'. Então, com 15 anos de Instituto é mais fácil convencer os pais, existe uma credibilidade. Mas no dia a dia a tarefa da nossa equipe é mais fundamental do que a minha presença, e aí a gente sai de ganhar um Grand Slam para começar a ganhar uma vida. Uma vida vale mais que um Grand Slam e a gente fica arrepiado só de pensar nisso. O tênis que me deu essa condição e a toda nossa família, que é natural da minha mãe que já era assistente social, do Gui, meu irmão. Hoje o Instituto já teve acesso a mais de 30 mil pessoas, como eu ia pensar que minha carreira ia me proporcionar isso?
Esse é o Gustavo Kuerten?
O menino, o Gustavo, o ídolo não são tão distantes. É difícil, mas no nosso projeto a gente conseguiu permanecer a essência do garoto. Brinco que para eu ser campeão no início o Larri teve que me ensinar, eu chegava na hora H de ganhar do cara e pensava "Será? O menino vai sair chorando da quadra, coitado...". Minha mãe é assistente social, meu irmão é deficiente então eu estou sempre ajudando, daí o Larri chegava e falava "Não, cara, você tem que pisar no pescoço dele, ganhar dele" e eu ficava naquele meio até aprender, que é dentro da quadra, que é um esporte, que é necessário. É um processo de desenvolvimento. Depois do sucesso é muito fácil perder a essência do menino, da inocência.
E você consegue acordar, olhar pra sua mulher, para os seus filhos e lembrar dessa motivação do menino do Gustavo lá atrás?
Os meus filhos que me acordam, né? (risada) Daí a gente já acorda e conta história para eles. De alguma forma essa luz, essa pureza de menino, é algo muito especial. A gente tenta cultivar isso, nós tivemos um pequeno encontro na empresa de uma ação do Instituto que foi bem sucedida. Estamos tentando disseminar o tempo inteiro porque funcionou muito bem para toda a trajetória que nossa família teve. O Larri, por exemplo, não tem o sobrenome Kuerten, mas quando eu falo família ele tá dentro, ele é como um pai para mim. Tentar permanecer dentro de um mundo que é muito competitivo, que a gente tenta sobreviver numa velocidade compulsiva e manter uma ingenuidade, a legitimidade, a pureza, a inocência da criança. Eu acho que Floripa ajuda muito isso. Morar aqui me ajudou muito porque vai lá na Lagoa não tem muita história, pessoal já brinca, já tá de chinelo, não permite tanto que a pessoa se ache no direito de que a vida é bem mais simples do que isso e Floripa tem esse poder de me deixar com essa realidade presente na cabeça o tempo inteiro.