Mesmo estável diretor de Cronometragem Esportiva e Relações Públicas da Longines, uma fábrica de relógios na Suíça, o insatisfeito Joseph Blatter tateava em busca de outra colocação na metade dos anos 1970. Procurava conhecidos, amigos e conselhos. Queria luz.
De um deles, próximo, ouviu:
- Não aceite esse emprego. O Havelange não vai durar mais de um mandato.
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Blatter foi encaminhado ao então franciscano escritório da Fifa, que João Havelange, na condição de presidente da entidade, começou a comandar em 1974, em Zurique. Foi indicado por Horst Dessler (1936/1987), o homem forte da Adidas. Na época, o brasileiro era considerado um intruso na casa maior do futebol por não ser anglo-saxão. Não merecia assim nem um bom dia dos antigos dirigentes ou dos funcionários. Dessler, o amigo alemão, morreu cedo, mas deixou um império alicerçado em parte pelo dinheiro da Fifa. Plantou Blatter.
Blatter fechou os ouvidos e seguiu a intuição, mesmo sem entender nada de futebol, só de marketing. Sentiu que o carioca recém-chegado, que falava francês e espanhol com fluência e que havia superado os especialistas europeus nas eleições, estava quase só no comando. Resolveu se aproximar mais quando viu que o forasteiro era um desbravador, tinha ideias únicas e sonhos de entrar pela porta da frente mesmo de nações tuteladas pela Cortina de Ferro, pelo comunismo chinês ou por ditaduras. Não havia endereço ruim. Juntos, mais adiante, visitariam mais de 180 países.
- O cargo de homem de confiança de Havelange estava vago. Ele sentiu a oportunidade e aproveitou. Se a Fifa se erguesse, ele cresceria junto - lembra o jornalista e professor universitário Ernesto Rodrigues, 61 anos, autor de Jogo Duro, a História de João Havelange (Editora Record, 420 páginas, R$ 45).
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Ao lado de Havelange desde 1975, Blatter alcançou a maioridade na Fifa seis anos depois, quando foi escolhido secretário-geral. Numa manobra política, o seu chefe não o chamou para o cargo. Deixou que o Comitê Executivo o nomeasse, o que garantiu total credibilidade na operação. Mas juntos, nos bastidores, a nova dupla derrubou o alemão Helmut Käsar, desde 1961 no posto, e começou a longa caminhada no topo do poder. Dezenas de outras cabeças rolariam.
- Numa comparação simples, Havelange é o tigre, Blatter, o gatinho. O primeiro fez o segundo. O moldou. Com Havelange, a Fifa se transformou num organismo internacional com ramificações em 209 países. Blatter manteve o ritmo, adaptando a Fifa aos novos tempos - admite Rodrigues.
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Depois de gastar 24 meses tecendo a biografia de Havelange, ouvindo 140 pessoas - Blatter entre eles -, Rodrigues, que lançou o livro em 2007, não guarda boas recordações do dirigente que completará 100 anos em 2016.
- Mesmo com testemunhas, ele negava os fatos. Não queria falar, ameaçava com advogados, desejava ditar os acontecimentos. Sua megalomania assustava. Deve ter assustado Blatter também durante muito tempo. Os dois tiveram problemas. O casamento não foi sempre uma maravilha.
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A relação azedou no congresso da Fifa em Chicago, em 1994:
- Blatter queria a presidência. Havelange ficou sabendo, não gostou e ganhou fácil a eleição.
Havelange tinha um ás na mão. Mudou as regras da Copa do Mundo. Chamou 32 seleções e não mais 24. Os votos choveram.
- Ficaram uns tempos afastados, aí reataram. Blatter pediu mil desculpas. Um precisava do outro.
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Ao se despedir da Fifa, em 1998, Havelange aceitou Blatter como sucessor, o mestre que abençoa o aluno. Não queria oposição, vinganças. Desejava uma aposentadoria tranquila sob as asas douradas da Fifa. Ganhou o pomposo título de presidente de honra.
Os dois nunca mais se afastaram. Blatter jamais perdeu um segundo de sono com a oposição.
Nem hoje, com o FBI na sala de jantar, não se vê rusgas entre a dupla que manda no futebol há mais de 40 anos. Quando a flecha da corrupção acertou Havelange, Blatter ajudou a curar o ferimento. Agora, com a criatura em apuros, o criador, mesmo alquebrado, não desligará o telefone. Não será anormal se os dois caírem juntos.
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