Os árbitros de futebol são cada vez mais colocados à prova. Sofrem a eterna pressão pelo acerto e convivem com reclamações, antijogo e teorias de conspirações. Por trás de tudo, porém, estão o estresse de viagens e o cansaço provocado pelo duplo emprego. Zero Hora viajou cerca de 5 mil quilômetros comprovando como árbitros de todas as divisões do Campeonato Gaúcho arriscam a vida na estrada. Só no Gauchão, que acabou domingo, os juízes fizeram 52 mil quilômetros, grande parte deles voltando para casa durante a madrugada porque no dia seguinte têm outro emprego.
No primeiro vídeo da série, Jean Pierre Lima e Francisco Neto falam sobre os desafios de enfrentar a estrada para apitar. Assista:
Tensão na estrada
Na noite de 11 de março, o árbitro Jean Pierre Lima apitou Veranópolis e Avenida na Serra e, após o jogo do Campeonato Gaúcho, que acabou às 22h30min, encarou uma longa e perigosa volta para casa, no outro extremo, em Pelotas. Com os assistentes em seu carro, pegou trânsito de caminhões nos dois sentidos na descida da BR-470. A lentidão dos veículos pesados, a ultrapassagem difícil, as curvas, a neblina e os trechos sem acostamento na Serra das Antas exigiam uma atenção nervosa, apesar do cansaço.
Vida de árbitro: na madrugada, o cansaço e a decepção de Franscico Neto
Duas horas na estrada depois, eles chegaram a Porto Alegre, em um posto de combustível no início da Avenida Farrapos, local de encontro dos árbitros em viagens. Era 0h45min. Os assistentes Lúcio Flor, de Alvorada, e André Bitencourt, de Viamão, embarcaram em seus carros estacionados ali, e foram para casa. Mas Jean Pierre tinha mais 256 quilômetros. Ele se abastece de café com funcionários, seus conhecidos de inúmeras idas e vindas pela madrugada.
- Seu café, chefe - oferece José André, sabendo do gosto do cliente assíduo.
À 1h o árbitro se embrenha pela BR-116. Viaja sozinho até o Sul do Estado. Na única parada, às 3h30min, em um paradouro em Cristal, ele renova a taxa de cafeína, faz um lanche e conversa com outro atendente das madrugadas.
- Olha lá o meu time, hein - provoca o gremista Leodino Gehrke.
- Está bem, deixa comigo - responde Jean Pierre, como quem ouve a piada centenas de vezes.
Às 4h40min o árbitro chegou a Pelotas. Foi direto ao hospital onde sua mulher, a médica Josiane, dava plantão. Só às 5h, ele entrou em casa, no bairro Laranjal, com a recepção de quatro cachorros liderados pela rothweiller Luna e os primeiros sinais da alvorada.
Desde Veranópolis, tinha percorrido 425 quilômetros à noite. Contando a ida, nas últimas 20 horas havia feito 850 quilômetros e apitado um jogo do Gauchão. Moído pela tensão, Jean Pierre cochilou um pouco mais de uma hora e foi trabalhar na sua outra profissão, a de professor de Educação Física.
Às 7h45min, dava aulas para crianças e adolescentes na escola municipal Santa Irene, até o fim da manhã.
Talvez pudesse dormir à tarde.
- Não. Tenho um outro emprego - alega Jean Pierre, sem vestígio de queixa.
Às 14h seu expediente é na Secretaria de Educação e Desporto do município, até as 18h ou mais.
Poderia descansar ao meio-dia.
- Também não. Tenho de redigir a súmula do jogo. Sobra tempo só para o almoço.
Vida de árbitro é um drama também fora de campo. Além do desgaste, das cobranças apaixonadas e das teorias de conspirações, o profissional enfrenta gincana para conciliar arbitragem com um outro emprego fixo, de renda garantida. Apenas os raros tops que usam o escudo da FIFA, como os gaúchos Leandro Vuaden e Anderson Daronco, atingem renda que lhes permitem viver do apito. Os demais têm de trabalhar cedo da manhã seguinte e voltam para casa após os jogos da noite, mesmo que apitem em Frederico Westphalen, a 427 quilômetros de Porto Alegre. Partem para uma roleta-russa na estrada.
Os árbitros viajaram 51 mil quilômetros em 117 viagens no Gauchão 2015. O recordista é Jean Pierre, de 35 anos. Em 14 jogos, ele andou 12.152 quilômetros, 5 mil deles no alto da madrugada.
- Quando se fala em árbitro experiente também significa experiência na estrada - explica o árbitro, aspirante FIFA.
Com a experiência de 18 Gauchões, Leandro Vuaden voltava para a sua Estrela na madrugada de 9 de abril após apitar Brasil-Pel e Lajeadense, em Rio Grande. Na direção de camionete alugada, Vuaden deixou os assistentes Marcelo Barison, José Eduardo Calza e o quarto-árbitro Marcelo Oliveira, em Porto Alegre. Às 4h, partiu sozinho para mais 109 quilômetros. Na BR-470, na altura de Nova Santa Rita, o sono pegou, ele estacionou o carro no Parador 22 e mandou um WhatsApp para a mulher, Jaqueline.
- Disse que chegaria mais tarde, não podia continuar - conta.
Vuaden dormiu uma hora no carro e seguiu viagem. Venceu 428 quilômetros até sua casa. Chegou passando das 6h.
*ZHESPORTES