A Copa do Mundo que terminou neste domingo deixa pelo menos seis lições para o futebol. O Mundial do VAR foi também o da bola parada como uma das principais armas ofensivas, superando, por exemplo a posse de bola. O torneio da Rússia mostrou também que a preparação de um time é mais importante do que contar com um super-craque. E ligou o alerta para os sul-americanos, que não vencem há quatro edições e só tiveram um finalista nesse período.
VAR
A Copa do VAR (o árbitro assistente de vídeo) terminou com um pênalti marcado pelos homens que assistiam à partida pela TV. O lance que envolveu um toque com a mão de Perisic na bola inicialmente não seria falta. Mas o argentino Néstor Pitana foi ao vídeo para confirmar. E deu a penalidade.
Sem contar a final e a disputa de terceiro lugar, foram 465 consultas aos juízes na televisão — 335 na primeira fase (uma a cada 300 minutos) e 130 das oitavas às semifinais (uma a cada 700 minutos). Na fase de grupos, houve 17 revisões do VAR — em 14 delas o árbitro mudou sua decisão de campo. Nos mata-matas, agora considerando Bélgica 2x0 Inglaterra e França 4x2 Croácia, apenas duas — o pênalti de Perisic, ontem, e uma falta da Suíça sobre um jogador da Suécia, nas oitavas, que inicialmente havia sido marcada dentro da área.
— O VAR não significa perfeição, mas o nosso índice ficou perto disse — avaliou Pierluigi Collina, diretor de arbitragem da Fifa, que alegou acerto do vídeo em 99,3% das situações.
Para o ex-árbitro inglês Keith Hackett, é necessário reavaliar a atuação do vídeo:
— O pênalti marcado para a França foi errado. Pitana havia acertado e foi chamado a rever. Isso já muda sua visão, já o induz. Depois, viu o lance em câmera lenta, que tira do contexto a jogada toda, faz parecer pior do que foi. Talvez o ideal seja o árbitro de vídeo decidir e só informar ao árbitro, não forçá-lo a decidir sozinho naquele momento de pressão.
A própria Fifa considera a atuação do VAR como uma das responsáveis pelo recorde de pênaltis: foram 29 na Copa. E também credita à tecnologia o aumento de gols de bola parada (leia mais abaixo).
— A ajuda do vídeo causou um temor entre os defensores sobre as penalidades. A marcação afrouxou, permitindo mais gols de bolas na área — opinou o treinador escocês Andy Roxburgh, integrante de um grupo de estudos da Fifa.
BOLAS PARADAS
A 1ª Lei de Newton diz que um corpo parado tende a ficar parado. Os principais analistas garantem que o futebol tem cada vez menos espaços, está mais compacto, mais estreito. Assim, muitas vezes vence quem consegue tirar a bola da inércia com mais qualidade e quem ocupa melhor as lacunas abertas do campo. No Mundial da Rússia, isso ficou ainda mais claro. Perto da metade dos gols (42,8%) teve origem em faltas, escanteios, pênaltis ou laterais.
Das 169 vezes em que os goleiros buscaram a bola dentro do gol, 72 foram precedidas de um apito do árbitro poucos segundos antes. O número é recorde na comparação com Copas anteriores. O máximo até então havia sido 38%, na França, em 1998.
O grupo de estudos da Fifa, liderado por Carlos Alberto Parreira, apontou que a Copa atual teve um gol marcado a cada 30 escanteios cobrados. Até 2018, a média era de um em cada 45. Para o escocês Andy Roxburgh, integrante desta equipe de analistas, o mérito deve ser compartilhado com os técnicos:
— O caso da Inglaterra de Gareth Southgate é exemplar. Dos 12 gols que marcaram, nove foram originados em bola parada. Os ingleses foram os reis dos escanteios.
Assim, um dos legados que a Copa do Mundo deixa é o de dar máxima atenção a esses lances.
— Passamos muito tempo treinando bolas paradas, prestando atenção nos mínimos detalhes, olhando as movimentações e as marcações — revelou o meia Loftus-Cheek, da Inglaterra.
A final da Copa também foi exemplar: o primeiro gol francês nasceu em uma cobrança de falta por Griezmann, que contou com a sorte — Mandzukic, ao tentar desviar, fez contra. Depois, Perisic empatou ao concluir uma jogada que começou com uma cobrança de falta ensaiada. E o pênalti cometido pelo próprio Perisic aconteceu em um escanteio batido por Griezmann.
POSSE DE BOLA
Futebol é volátil e cíclico. E a Copa de 2018 encerrou a atual era de vitórias de quem tem mais posse de bola. A estratégia de controle aprimorada pela escola espanhola, inspirada no Barcelona de Pep Guardiola, venceu as Eurocopas de 2008 e 2012 e o Mundial de 2010. Mas fracassou na Rússia. Dos 16 jogos do mata-mata, 10 foram vencidos por quem ficou menos com a bola. Inclusive a final, na qual a Croácia teve a posse por 61% do jogo (dados da Fifa). Os campeões mundiais tiveram menos controle em cinco das sete partidas disputadas.
O título francês foi o primeiro desde 2002 no qual venceu o time que mais tempo observou o adversário com a bola. Em 2014, a Alemanha teve 64%; em 2010, a Espanha bateu a Holanda com 57%; em 2006, a Itália passou pela França tendo 55%. Só o Brasil de 2002 havia vencido ficando menos tempo com a bola, 44% diante da Alemanha.
— É um erro assumir que posse de bola signifique criar oportunidades de gol. Mesmo sem ter a bola, é possível superar seus adversários de muitas maneiras diferentes — comentou o técnico uruguaio Óscar Tabárez.
Os três times que mais dominaram as partidas da Copa foram fracassos retumbantes. Espanha (75% de posse de bola), Alemanha (72%) e Argentina (66%) deixaram o Mundial precocemente — espanhóis e argentinos nas oitavas, alemães ainda na fase de grupos.
— A Espanha, por exemplo, teve um jogo lento e desesperador. Não saiu nunca disso. Não teve profundidade. Faltou velocidade, faltou drible — analisou o jornalista Rafael Piñeda, do jornal El País.
SUL-AMERICANOS
Nenhuma seleção da América do Sul chegou às semifinais, dominadas pela Europa, que desde a Copa de 2006 fica com o título — dos oito finalistas desde aquele Mundial, apenas a Argentina de 2014 furou o bloqueio. Para quem não concorda que o momento atual do futebol europeu obriga os sul-americanos a reagir imediatamente, e que a Copa do Mundo foi só uma circunstância do jogo e não uma consequência dos modelos vividos atualmente, vá ver o resultado dos campeonatos de base. Das últimas quatro edições do Mundial sub-20, só uma foi vencida pelo Brasil. Todas as outras ficaram na Europa — em 2013 ganhou a França, em 2015 venceu a Sérvia, e em 2017 levou a Inglaterra. No sub-17, a situação é ainda mais grave: o último título sul-americano foi do Brasil em 2003, quando Abuda era o destaque.
É verdade que a América do Sul ainda provê craques para o mundo, mas também é verdade que os europeus estão entregando novos talentos. Entre os principais clubes, o protagonismo sul-americano é dividido com os outros continentes. No Real Madrid, até a temporada passada, o astro era o português Cristiano Ronaldo, e os cometas que orbitavam em torno dele eram o alemão Kroos, o galês Bale, o croata Modric, o francês Benzema, o espanhol Isco e só o brasileiro Marcelo. No Manchester City, o craque é De Bruyne. No United, é Pogba. No Liverpool, é o egípcio Salah. Só no Barcelona os sul-americanos dominam, com Messi e Suárez.
O presidente da Fifa, Gianni Infantino, tentou amenizar a situação:
— Essa Copa mostra domínio da Europa, mas mostrou grandes habilidades de outros e foi bastante equilibrado. Os resultados deveriam ser um motivador para as outras confederações investirem mais.
A Uefa, agora, deixará a situação ainda mais complicada, com a criação da Liga das Nações, torneio que ocupará as datas disponíveis para jogos de seleção até as Eliminatórias para a Euro 2020. Isso impedirá que os times sul-americanos enfrentem as principais forças europeias, lembra o jornalista Rodrigo Mattos, do UOL.
E OS CRAQUES?
Luka Modric foi eleito o craque da Copa. Mas poderia ter sido Eden Hazard. Ou Kyllian Mbappé. Ou Antoine Griezmann. Ou Ivan Rakitic. Quando uma competição termina com tantas opções para receber a Bola de Ouro, é sinal de que não houve tantos craques destacados. Principalmente porque as estrelas de antes do Mundial não foram bem em solo russo. Cristiano Ronaldo, Messi, Neymar, Kroos, Marcelo, Suárez, Iniesta, Lewandowski, Salah — para citar alguns nomes que tanto aparecem em nossas TVs nos principais campeonatos europeus — ficaram abaixo do que se esperava. Ainda que tenham brilhado esporadicamente, não tiveram a sequência de bons jogos que o torneio pede. Nem os que chegaram à decisão encheram os olhos. A Copa de 2018 manteve a tendência de um conjunto ser mais importante do que a individualidade.
— Não houve um craque inquestionável. A era é dos times. As grandes seleções não podem servir para levar ao Olimpo um único jogador. As grandes seleções são para serem campeãs — avaliou o comentarista Paulo Vinícius Coelho, dos canais Fox Sports e da Folha de São Paulo.
Desde Ronaldo em 2002 (e talvez Zidane em 2006, mas faltou-lhe o título e sobrou-lhe o cartão vermelho pela agressão em Materazzi), há destaques nas edições seguintes, como Cannavaro em 2006, Iniesta em 2010 e Müller em 2014. Mas ninguém brilhante como foi Romário em 1994 ou o próprio Zidane em 1998. Dos quatro primeiros colocados, Bélgica, Croácia e França se destacaram menos por suas individualidades e mais por ter um time forte e bem ajustado.
GOLEIROS
Se a Copa não apresentou um craque entre os jogadores de linha, entre os goleiros houve vários destaques. O melhor do torneio, segundo a Fifa, foi Courtois, da Bélgica. O goleiro que tirou do Brasil as chances de buscar o hexa terminou a competição com 27 defesas (o maior número) e acertou 41 lançamentos.
— É um dos maiores prêmios individuais que você pode ter como goleiro. Tenho muito orgulho disso — postou Courtois nas redes sociais.
O croata Subasic defendeu quatro chutes nas decisões por pênaltis e igualou o recorde do alemão Schumacher e do argentino Goycochea. O inglês Jordan Pickford, mesmo sendo mais baixo do que a média (ele tem 1m85cm, Courtois e Subasic, mais de 1m90cm), fez grandes defesas, aproveitando posicionamento e reflexo.
— Tenho força e agilidade. Não me importo se não sou o maior goleiro, porque é sobre estar lá no momento certo e fazer a defesa. Todas as defesas que faço no treino levo para o campo — disse Pickford.
A importância dos goleiros já vinha sendo notada, mas a Copa deixou ainda mais nítida a evolução da posição. Além de defender, eles ficaram também responsáveis por armar contra-ataques, coordenar defesas, liderar equipes.
— Hoje, a gente tem preparação especializada, estamos evoluindo cada vez mais. O uso de vídeos tem ajudado muito. Isto faz com que a gente cresça técnica e taticamente. Também nos ajudam muito na questão de pênaltis, de bola parada. A Copa mostrou muitos jogos sendo definidos pelos goleiros — ponderou Marcelo Grohe.
Para ficar ainda entre os goleiros, um deles estabeleceu um novo recorde. O egípcio Essam El-Hadary tornou-se o mais velho jogador a atuar em uma Copa, aos 45 anos. E no jogo contra a Arábia, defendeu um pênalti.