Na madrugada do dia 10 de novembro de 2013, por volta das 3h, Lourdes Donida de Carli recém havia se deitado para dormir quando começaram os barulhos do lado de fora da sua casa. Em um primeiro momento, pensou que era o casal de filhos e o genro chegando da festa de casamento, da qual ela e o marido tinham saído mais cedo. Mas, minutos passaram e ninguém entrou na residência. Foi então que a empresária decidiu verificar o que estava acontecendo. Ao sair para a sacada, constatou que um incêndio consumia toda a estrutura do negócio ao qual dedicara os últimos 14 anos de sua vida. Poucas horas depois, a malharia Don Carli, sediada em Farroupilha, na serra gaúcha, foi destruída pelas chamas.
— Olhei e o fogo já estava no telhado. Minha primeira ideia foi ligar para os bombeiros, depois, lembro que peguei meu evangelho, que sempre ficava do lado da cama, abri, fiz uma pequena leitura e falei com Deus. Disse que queria que a minha casa e a minha família ficassem intactas e que o resto ficava nas mãos dele — relata a sócia fundadora e diretora de desenvolvimento da malharia, que hoje tem 60 anos.
Mesmo ao lado da empresa, a residência da família não foi atingida pelo fogo e ninguém ficou ferido, pois os funcionários estavam de folga na data. Mas os danos materiais foram muitos: todo o estoque de fios e malhas, as máquinas de costura e tecelagem, a loja e os pedidos que estavam prontos para entrega estavam queimados. O que não virou cinzas, foi danificado ou inutilizado pela fumaça.
Para Lourdes, o momento mais triste foi no dia seguinte, quando todos os funcionários chegaram para trabalhar. Ela e o marido, Aleri de Carli, hoje com 58 anos, precisaram demitir todos os colaboradores que atuavam no local com a reserva de dinheiro que tinham, mas prometeram recontratá-los assim que possível. E foi justamente por saberem do impacto que a empresa tinha na vida dessas pessoas que os integrantes da família logo deram um jeito de voltar ao trabalho.
Na segunda-feira, a malharia já começou a ser temporariamente instalada na parte debaixo da casa de Lourdes e Aleri, onde funcionou antes da construção da sede ao lado. Com equipamentos emprestados e a ajuda de amigos, conhecidos e colegas do setor, retomaram a produção para vender nas filiais ainda abertas em shoppings da cidade. Também voltaram a terceirizar o serviço de tecelagem e, aos poucos, conseguiram recontratar os funcionários.
— Quando fechou um ano do incêndio, a gente já estava com as máquinas no prédio novo. Sempre falo que, quando acontece uma coisa muito ruim assim, tu senta e chora ou tu levanta e começa de novo. Se tu quiser ficar chorando, pode chorar o tempo que precisar, agora, se tu levantar logo e recomeçar, vai ser mais rápido — conta Lourdes.
Reestruturação foi avançando aos poucos
Para comprar os equipamentos e construir uma nova sede, a família dependia do seguro — burocracia citada como uma das maiores dificuldades envolvendo o incêndio. Diante do atraso no pagamento e reembolso, eles recorreram a empréstimos e ficaram em uma situação financeira complicada. Atravessaram esse período com pequenos passos e conseguiram, em um ano, concluir uma parte da obra.
Neste período, Lourdes comenta que a presença dos filhos já adultos foi muito importante, porque as ideias modernas de Jéssica e Mateus de Carli foram somadas à experiência do casal.
— Com essa reconstrução, a gente pode melhorar os probleminhas do prédio antigo, fazer melhor do que estava antes. Tivemos essa chance de reconstruir pensando em como melhorar. A loja se manteve no mesmo lugar, mas foi organizada de forma diferente. A produção também foi pensada diferente, com a linha de produção, para funcionar melhor, e o estoque foi colocado mais perto da loja — afirma Jéssica, 31 anos, que é diretora administrativa e responsável pelo marketing.
Hoje, a malharia tem 45 funcionários e conta com uma estrutura de 2.550 metros quadrados, duas vezes maior do que aquela que foi consumida pelo fogo. Desde o incêndio, a empreendimento tem no logo fênix — ave capaz de renascer das próprias cinzas depois de morta. Também é inteiramente administrada pela família: além de sócio fundador, Aleri atua como diretor financeiro e o filho, Mateus de Carli, 28 anos, como diretor industrial e de produto. Já o marido de Jéssica, Airton Costa Junior, 32, trabalha na área de relações públicas e comercial da empresa desde outubro de 2019.
Impactos do incêndio
Na visão de todos, o incêndio atrapalhou muito o desenvolvimento do negócio, pois foi necessário recolocar a marca no mercado. Jéssica aponta que o ano entre o acidente e a reconstrução foi bem difícil, porque tinham as filiais nos shoppings, mas não havia produto pronto para vender, então os clientes precisaram trocar de fornecedores — e muitos não retornaram para a Don Carli quando a empresa se reergueu.
Para ajudar a enfrentar esse desafio, logo após a reconstrução, a família contratou um profissional para atuar no setor comercial da empresa. Com o passar do tempo, a malharia foi retomando seus contatos e entrando novamente no roteiro das excursões de revendedores.
— Tem representante que hoje vende de 15% a 20% do que vendia antigamente, porque a força de venda da marca não é a mesma. Isso é algo que até hoje a gente sente e trabalha para que volte ao patamar que era antes, mas não é tão fácil. Claro que a forma de comprar dos clientes também mudou, mas foi uma perda que tivemos devido ao incêndio — acrescenta Airton.
Empreendedorismo no RS
Com o objetivo de apresentar histórias inspiradoras, a série contará semanalmente as trajetórias de empreendedores que transformaram uma ideia ou um sonho em realidade. Fundadores e sócios de 10 empresas de diferentes cidades gaúchas compartilharão os desafios superados e darão dicas para quem deseja abrir seu próprio negócio nos ramos de tecnologia no campo, saúde, moda, cuidados com o corpo, entre outros.
Ele ressalta que continuaram investindo na parte de representantes comerciais para ter outros canais de distribuição, além da venda direta na sede da loja. Também aderiram a canais de comercialização como o e-commerce e, atualmente, vendem pelo site e têm uma equipe destinada ao atendimento pelo WhatsApp.
Na pandemia, um novo desafio
A chegada da pandemia de covid-19 também impactou no funcionamento da malharia, já que a administração não estava preparada e nem sabia como lidar com os clientes naquele cenário. Por isso, Airton afirma que foi preciso estudar o mercado e ficar atento às mudanças no setor de vestuário, como a preferência por moletom nos períodos de distanciamento social. Os sócios também investiram na criação e comercialização de máscaras têxteis sem costura — desenvolvida em colaboração com o designer e programador Shima-Seiki Kleiton Molardi Schiavenin, 41 anos.
De acordo com Airton, o produto foi vendido para o Brasil inteiro e, inclusive, para uma representante que revendeu na Finlândia. Somente no primeiro dia de anúncio das máscaras pelo site, foram mais de cem pedidos. Esse salto nas vendas ajudou a impulsionar ainda mais o trabalho da malharia, que se adaptou ao momento e, neste ano, passou por uma reforma e teve sua loja reinaugurada.
— Acabamos abrindo novos horizontes a partir da máscara. Algumas pessoas não compravam as malhas, mas vieram buscar as máscaras, conheceram a loja e os produtos, e começaram a comprar também. A máscara abriu um leque de oportunidades e a gente soube aproveitar — diz.
Para atender a demanda em torno das máscaras, a Don Carli foi na contramão de outras companhias gaúchas, e precisou contratar novos profissionais. Na visão de Mateus, tanto a pandemia quanto o incêndio serviram para mostrar que o maior valor de uma empresa não são as máquinas ou materiais, mas sim os funcionários.
Cautela e dedicação marcaram o início da empresa
A Don Carli foi fundada em fevereiro de 1999 por Lourdes e Aleri, mas a empresária já trabalhava no setor de malhas muito antes disso. Natural de Santa Catarina, ela foi criada no interior de Farroupilha e aprendeu a mexer na máquina de costura da mãe quando ainda era criança. Como a família era grande — Lourdes tinha 11 irmãs e um irmão — as roupas eram feitas em casa. Na juventude, também fez curso de costura de calçados no Senac e trabalhou em empresas do município.
Logo depois que casaram, Lourdes e o marido compraram uma máquina de costura com as economias que tinham e ela começou a trabalhar em casa. Já Aleri era funcionário dos Correios, mas a ideia do casal sempre foi abrir um negócio próprio, para que Lourdes também pudesse cuidar dos filhos. Mais adiante, eles adquiriram um equipamento para tecer e, com cautela, passaram a comprar fios e fornecer malhas para as lojas do shopping.
Com o avanço do negócio, decidiram abrir a empresa — nessa época, os filhos eram pequenos, e a produção acontecia no porão de casa. Já a mudança para a residência do endereço atual, no bairro Vicentina, ocorreu em 2000. Lourdes trabalhou sozinha alguns anos, até que Aleri pediu demissão e se juntou a ela e aos cinco funcionários já contratados, para ajudar a vender as mercadorias de porta em porta, em cidades como Passo Fundo, Marau, Lajeado e Estrela.
— Quando nos mudamos, a malharia era só na parte de baixo da casa, mas logo tivemos que aumentar, porque ficou pequeno. Conforme ia aumentando as vendas e ia comprando máquinas, ia aumentando o espaço físico também. Mas uma coisa que a gente sempre prezava era por manter as contas em dia, nunca dar um pulo grande. Sempre falava para o meu marido: “vamos trabalhar com a calculadora na mão, que não tem erro” — conta Lourdes.
A empresária explica que não lembra de terem tido dificuldades para administrar a parte financeira da empresa, que ficava sob responsabilidade de Aleri, descrito pelos filhos como “bom de matemática” e “organizado”. As despesas com matéria-prima e pagamento de funcionários eram sempre controladas na ponta do lápis, e os avanços da malharia condiziam com aquilo que o casal podia bancar.
Jéssica e Mateus também afirmam que o pai já tinha uma visão mais comercial e que não teve medo de investir mais quando necessário. Ambos sinalizam ainda que a mãe é muito positiva e nunca reclama diante de uma dificuldade.
— Observando pela nossa geração, o que eu vejo é que as pessoas enxergam muito mais dificuldade porque não querem abrir mão de outras coisas. Naquela época, meus pais passaram dificuldades, abriram a empresa e trabalhavam todos os dias, nos finais de semana, não se preocupavam se perdiam algum evento, por exemplo. Eles abriaram mão por causa da empresa — comenta Mateus.
Para Lourdes, um empreendedor precisa dar passos conforme sua capacidade, a fim de amenizar os desafios pelo caminho, e se dedicar muito para que seu negócio siga em frente. A empresária indica ainda que as pessoas busquem pela ajuda de profissionais capacitados – a malharia conta, desde o início, com o suporte de um escritório de contabilidade, que foi fundamental na época do incêndio. Também é necessário buscar conhecimento, como cursos sobre o desenvolvimento de uma empresa e setor de atuação. Aos 47 anos, Lourdes voltou a estudar, concluiu o Ensino Fundamental e o Médio e se formou em Moda pela Universidade de Caxias do Sul (UCS).
— É preciso ir com calma, investir bastante em cursos, em conhecimento sobre o que tu está fazendo. Não adianta mergulhar de cabeça em uma coisa que tu não entende, porque tu nunca vai ir para frente. Tem que sempre controlar as finanças, se dedicar bastante e gostar do que tu faz — finaliza.