Cuidadosamente decorado, um apartamento de São Leopoldo, no Vale do Sinos, busca levar a crianças negras um pouco mais do que o reforço escolar tradicional. Quadros, imagens, livros e figuras com simbologia afro estão espalhadas pela casa da professora Fernanda Duarte de Oliveira, 41 anos, remetendo a um mundo onde o negro não precisa de esforço para se ver representado.
— Um aluno me contou que os colegas precisavam encontrar uma imagem que os representasse em uma revista. Ele é negro, não encontrou nada e teve que desenhar. Isso é um problema, o negro não se identifica — relembra a pedagoga, formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em um programa de ingresso a educadores que ainda não haviam concluído o Ensino Superior.
A fim de incluir na alfabetização a cultura e a origem dos primeiros povos a chegar ao Brasil – escravizados pelos portugueses – Fernanda criou, logo após a entrada de 2020, o projeto "Oorun", no qual recebe na sala de seu imóvel alugado um grupo de crianças entre sete e 10 anos. No idioma africano Iorubá, a palavra oorun significa sol, uma referência à luz que ela vislumbra brilhar e ser irradiada por seus alunos.
— A ideia é alfabetizar utilizando os elementos da cultura negra, ampliando os conhecimentos deles sobre a nossa comunidade. Também é reforçar que o negro pode ser o que ele quiser — reforça.
Colado à geladeira, um cartaz pintado a lápis colorido clama pelo fim do racismo e pede por um mundo com mais paz e amor. O material foi produzido pela primeira turma, iniciada em 7 de janeiro.
Com um laço amarelo e uma longa trança no cabelo, Rafaela de Oliveira, oito anos, é uma das mais falantes do grupo, segundo a professora. Já pensando na volta à escola – onde irá cursar o terceiro ano do Ensino Fundamental –, Rafaela jura estar ansiosa pelo reencontro com os colegas. Ela conta que gosta de estudar.
— Eu gosto de tudo, gosto dos meus amigos e de ler. E aqui a gente aprende mais, aprende sobre a cultura negra. Ah, e pintamos também — afirma a menina, ao apontar para as telas sobre a parede, relembrando uma atividade de reprodução dos quadros por parte dos alunos.
Com reuniões semanais, as lições são gratuitas e chegam hoje a cinco crianças, metade das vagas disponíveis. Inicialmente, as inscrições foram destinadas a famílias de baixa-renda, porém a distância até o apartamento onde ocorre o reforço escolar foi um empecilho.
— Algumas não tinham nem o dinheiro da passagem, por isso ampliamos pra quem quer aprender mais sobre negritude. No futuro, queremos montar bases móveis, kits para visitar vilas e ONGs, com livros, giz de cera, itens que a criança pode se perceber, se enxergar neles — complementa.
Sem qualquer apoio financeiro, Fernanda conta com jogos emprestados para as atividades, além de bonecas negras e giz de cera com os mais variados tons de pele. Sobre o sofá, estavam quadros de Raquel da Silva, pintora do Vale do Sinos, que foram cedidos, com o objetivo de virarem referência local a, quem sabe, futuros artistas. Em um bidê no canto da sala, havia um livro de Michele Obama, ex-primeira dama norte-americana, exposto ao lado de uma reprodução de Nelson Mandela, primeiro presidente negro da África do Sul, vencedor do prêmio Nobel da Paz.
Professora há duas décadas, Fernanda se mostra emocionada ao falar de seus planos, que incluem cadernos temáticos, com figuras de crianças negras expressando frases empoderadas, como "meu cabelo é lindo".
— Quero ter verba para comprarmos material próprio e levar o ensino adiante. E mostrar ao jovem negro que ele não precisa ter o sub-emprego como única opção de futuro — finaliza.