A derrota no Supremo Tribunal Federal (STF) da proposta feita em 2010 pela Procuradoria-Geral da República (PGR) — que buscava padronizar o ensino religioso nas escolas públicas do país, ofertando um conteúdo programático que envolvesse todas as doutrinas — não altera, na prática, a rotina nas redes de educação. Estados e municípios têm autonomia para definir conteúdos e regulamentação, e vale lembrar que essas aulas são facultativas para os estudantes. Mas a decisão impulsiona discussões sobre o caráter laico do Estado e a sua neutralidade frente aos diferentes credos, já que mantém a autorização para que seja lecionado apenas um tipo de religião, inclusive por representantes, como pastores e rabinos. Essa é a chamada modalidade confessional.
Para o sociólogo e padre jesuíta José Ivo Follmann, doutor em Sociologia das Religiões e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unisinos, perdeu-se uma valiosa oportunidade de promover o conhecimento da pluralidade religiosa que forma a sociedade brasileira e barrar proselitismos — segundo ele, inconvenientes em tempos de intolerância e preconceito.
— Fiquei negativamente surpreso com a decisão. Defendo a tese de que deveríamos ter na escola um "ensino de relações religiosas", para que, enfim, pudéssemos ter o mínimo de percepção da riqueza que existe na plurirreligiosidade. Vejo (na decisão) um sinal de retrocesso — lamenta o pesquisador.
No Rio Grande do Sul, a Secretaria Estadual da Educação (Seduc) segue a determinação da Constituição do Estado, de 1989, que prevê ensino religioso na forma interconfessional, contemplando todas as religiões. A decisão do STF, garante a Seduc, não alterará em nada as orientações à rede pública estadual, ressaltando que também segue determinação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), cujas exigências incluem a oferta da disciplina no Ensino Fundamental em caráter facultativo ao aluno. A Constituição Estadual define que o ensino religioso deve estar presente em toda a Educação Básica.
Caráter facultativo não é cumprido
Como nem sempre a teoria corresponde à prática, o ensino religioso no Estado também precisou se adaptar à realidade da educação pública. Apesar de a Seduc estabelecer que o professor da disciplina precisa ter licenciatura, que pode ser em qualquer área, mais 400 horas de conhecimento específico, as escolas costumam escalar aqueles professores que estão com alguma disponibilidade de horário para assegurar a hora/aula semanal. O caráter facultativo também não é cumprido, porque as instituições não dispõem de recursos para ofertar outra atividade aos alunos que não quiserem acompanhar as aulas de religião. O jeito foi organizar um conteúdo que fosse mais atraente para os estudantes.
— Não teríamos onde colocar os alunos que não quisessem assistir às aulas de ensino religioso. Então, abordamos assuntos transversais, que falam de valores, sociedade e comportamento. São temas importantes, mas que não são abordados por viés religioso — diz a professora Ana Paula Delgado, que é formada em História, mas também leciona ensino religioso na Escola Estadual Otaviano Manoel de Oliveira Júnior, em Guaíba, na Região Metropolitana.
Até trabalhamos o tema, quando os alunos trouxeram curiosidades sobre religiões pouco tradicionais no Brasil, mas não com a ideia de convencer ninguém a seguir alguma delas
João Sant'Ana
Professor
— Até trabalhamos o tema, quando os alunos trouxeram curiosidades sobre religiões pouco tradicionais no Brasil, mas não com a ideia de convencer ninguém a seguir alguma delas. Trabalhamos muito os assuntos da atualidade — completa o professor de geografia João Sant'Ana, que também já teve a tarefa de comandar as aulas de religião na rede estadual.
O ensino religioso foi acrescentado na Constituição de 1988 por conta de forte pressão de organizações religiosas, uma medida bastante criticada pelo, na época, Fórum em Defesa da Escola Pública, que defendia uma educação pública integralmente laica. A ação da Procuradoria que chegou ao STF também questionava o acordo entre o Estado Brasileiro e a Santa Sé, aprovado pelo Congresso em 2010, que prevê o "ensino católico e de outras confissões". Neste ponto, a decisão do STF é vista por muitos educadores como um privilégio a religiões que têm mais representatividade. Em nota, o Observatório da Laicidade na Educação (OLE) afirmou: "Ganharam os defensores da modalidade confessional do ensino religioso nas escolas públicas, como se faz no Rio de Janeiro e na Bahia. Com esse resultado, é de esperar que outros Estados caminhem nessa direção, capitaneados pela Igreja Católica, principalmente, e algumas Igrejas Evangélicas, secundariamente".
Para a Seduc, o caráter interconfessional do ensino religioso no Estado está consolidado e não há perspectivas de que isso se altere. Mesmo com a presença de um crucifixo no hall de entrada, o ensino de uma religião específica está longe de ser realidade no Colégio Estadual Paula Soares, em Porto Alegre. A escola, como outras instituições, tem na grade curricular a disciplina de ensino religioso, mas o que se aprende na aula semanal, obrigatória para todos os estudantes a partir do 6º ano do Ensino Fundamental, são conteúdos ligados à ética e aos direitos humanos. De acordo com a diretora Genecy Terezinha Godois Segala, os alunos até fazem atividades para compreender as diversas crenças presentes no Brasil, mas nunca uma específica.
— Eles acham estranho a presença de um crucifixo e questionam muito isso. Sempre procuro explicar que integra o patrimônio do colégio, que, quando a escola foi construída, a religião católica era dominante no Brasil. Nunca pensamos em tirar porque faz parte da história, mas a nossa escola não católica. O que ensinamos são valores, a ética e o respeito. É isso que importa.
A Secretaria Municipal da Educação de Porto Alegre também não pretende fazer alterações no modelo adotado hoje, mesmo com a decisão do STF. Segundo o secretário Adriano Naves de Brito, as escolas da rede não têm uma disciplina específica de ensino religioso, mas trabalham temas ligados ao assunto dispersamente na área de humanas.
—Não temos disciplina específica e nunca recebemos orientação de que devemos ter. Segue tudo como era antes.