Nos Estados Unidos, não é incomum que bebês de classe média já nasçam com uma conta poupança reservada para os gastos com Ensino Superior no futuro. Depois de formados, a realidade para muitos é enfrentar grandes dívidas estudantis. Ainda que as anuidades sejam inferiores às de universidades privadas, as faculdades públicas no país são pagas. Quem não for contemplado com uma bolsa tira do próprio bolso para cursar a graduação.
No Brasil, ricos e pobres podem conquistar um diploma universitário sem pagar mensalidade. O caminho? Estudar bastante para ficar entre os mais bem colocados em concorridos vestibulares para as universidades públicas. Em tese, é um modelo mais igualitário. Mas as estatísticas comprovam que o acesso não é tão universal.
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Em 2004, segundo dados do IBGE, os estudantes que pertenciam aos 20% da população com os maiores rendimentos familiares representavam 54,5% do total de alunos no Ensino Superior público. Os 20% dos brasileiros com menor renda familiar representavam apenas 1,2% de universitários.
Políticas públicas - como as de cotas e as de financiamento - e a ascensão da classe C (jovens que antes precisavam trabalhar exclusivamente para ajudar no sustento da casa puderam se dedicar aos estudos) reduziram a discrepância. Em 2014, os mais ricos eram 36,4%, e os mais pobres, 7,6%.
Ainda que os dados mostrem um avanço na democratização, o senador Marcelo Crivella (PRB-RJ) acredita que o abismo entre os mais pobres e os mais ricos no Ensino Superior pode diminuir se os mais privilegiados passarem a pagar pelos estudos. Esse foi o motivo para apresentar o projeto de lei 782/2015 em dezembro. Crivella propõe que estudantes com renda familiar superior a 30 salários mínimos (R$ 26,4 mil) paguem uma anuidade para frequentar universidades públicas. O valor da cobrança, conforme consta no texto do projeto, seria calculado com base nos custos por aluno em cada curso. "A maior parte das vagas nas instituições públicas é ocupada por estudantes que poderiam pagar, com maior ou menor sacrifício, os seus cursos nas universidades privadas, impedindo, indiretamente, que tais vagas sejam oferecidas a estudantes reconhecidamente carentes dos recursos necessários, muitas vezes até, para pagar as próprias taxas dos exames vestibulares", justifica o senador no projeto de lei.
Crivella argumenta que uma mudança na lei também arrecadaria mais fundos para as instituições que, segundo o senador, "andam à míngua de recursos". Por e-mail, via assessoria de imprensa, o senador diz que o sistema de cotas é adequado, mas sua proposta não é excludente. E questiona: "De que adianta para um aluno que pode pagar ter a universidade gratuita, mas sem estrutura por dispor de poucos recursos?".
A proposta não agrada Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que agrega uma rede de grupos e entidades. Ele cita os recentes debates sobre o tema no Chile e nos EUA como exemplos de um movimento que caminha no sentido contrário. No país sul-americano, acaba de entrar em vigor a lei do ensino universitário gratuito, aprovada em dezembro de 2015. Nos EUA, uma geração de endividados está no cerne da discussão sobre o quão justo seria o sistema vigente. O valor total da dívida estudantil no país já ultrapassa US$ 1,3 trilhão. De acordo com The Institute For College Access and Success, uma ONG que trabalha para tornar a educação superior no país mais acessível, em 2014, 69% dos estudantes que se formaram em universidades públicas ou sem fins lucrativos saíam com algum tipo de endividamento. A média por aluno era de US$ 28.950, o equivalente a mais de R$ 117 mil.
Para Daniel, implementar uma forma de cobrança de mensalidade ou matrícula para os mais ricos, por meio de mudança na lei, abriria fortes precedentes para uma diminuição do limite estabelecido conforme a renda familiar no futuro.
- A chance desse patamar descer para as classes mais baixas é grande. Você abre uma porteira para uma visão equivocada de como deve ser a universidade. A curto prazo, se criaria outro tipo de estudante: o que acha que tem mais direitos
porque paga - avalia.
À frente da entidade cuja bandeira principal para democratizar o ensino superior é a criação de políticas afirmativas, Daniel defende uma reforma tributária, investimentos na educação básica e assistência aos universitários carentes durante os estudos.
- A desigualdade nas universidades é um sintoma, não uma causa. O Brasil é desigual - pondera.
Maria Beatriz Luce, professora titular de política e administração da educação na UFRGS, defende a mesma bandeira. Ela, que já foi conselheira por dois mandatos do Conselho Nacional de Educação (CNE), nas câmaras de Educação Básica e Superior, enxerga um progresso anual.
- No atual momento histórico, o Ensino Superior público gratuito é essencial para a democracia no Brasil. As universidades não podem ser excludentes, nem para os mais pobres nem para os mais ricos. Além da produção de conhecimento científico, as instituições têm função de formação do cidadão - afirma Maria Beatriz.
Economistas enxergam benefícios na cobrança
Se um estudante pudesse escolher entre duas universidades de qualidade equivalente e uma fosse gratuita e a outra não, qual ele escolheria? A pergunta foi tema de artigo publicado em 2012 na Revista Brasileira de Economia por dois pesquisadores, Eduardo Azevedo, professor de economia na Wharton School of Business, e Pablo Salgado, doutor em Economia pela PUCRJ. Para eles, instituir uma cobrança para os mais ricos nas universidades públicas otimizaria os recursos investidos na área. Azevedo analisa:
Ser admitido em uma universidade pública é uma espécie de prêmio do Estado. Mas se usa mal as poucas vagas da instituição. Quando você dá esse prêmio, a sociedade está pagando para uma pessoa que tem dinheiro para estudar, sendo que, se ela tivesse de pagar em ambas, talvez pudesse escolher a particular, abrindo vagas na pública. Não é incomum os pais mais ricos darem um carro para o filho que passa no vestibular. É uma prática cultural no Brasil. Comprar um carro, no fim das contas, é mais barato do que pagar por uma universidade privada.
O economista avalia que, desse modo, a distribuição de renda se torna desigual, já que os impostos, pagos por todos, auxiliam uma parte da população que não precisaria do custeio do governo para estudar.
- Quando você aumenta impostos para dar esse dinheiro para a parcela mais rica, a eficiência da economia diminui - acrescenta.
Gustavo Ioschpe, autor do livro A Ignorância Custa um Mundo - O Valor da Educação no Desenvolvimento, defende que as universidades públicas expandam o número de alunos matriculados e cobrem mensalidades. O economista sugere um modelo em que a pesquisa seja uma responsabilidade do Estado, financiada por instituições como a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), enquanto o ensino deveria ser pago por quem poderia arcar com custos.
- Na parte de graduação, uma alternativa seria cobrar mensalidade e usar esse dinheiro para pagar os salários dos professores e a estrutura. Quem não puder pagar, pode provar com declaração do Imposto de Renda. A isenção deveria ser gradativa, até chegar naqueles que, na verdade, precisam até mesmo de uma ajuda de custo para se manter estudando. Estamos perdendo gente que poderia estar na universidade, mas não pode se sustentar. O sistema deveria dar financiamento para quem precisa - defende.
Ele ressalta que, nas faculdades onde há mais expectativa de ganhos salariais no mercado, a concentração de alunos de alta renda é ainda maior. No curso de Medicina da USP, por exemplo, segundo dados da Fuvest, dos alunos matriculados no curso em 2015, 22,7% declaram renda familiar mensal superior a 20 salários mínimos. A proporção dos alunos com renda entre um e três salários mínimos não chega a 8% do total. Ioschpe afirma:
- Dizer que as vagas estão disponíveis para todos independentemente de classe é um engano. Entra quem tem condições de bancar uma escola particular ou um cursinho. A participação dos alunos pobres nas universidades públicas é normalmente relegada a cursos de baixa remuneração.
Há excesso numa ponta e falta na outra
A comparação entre as informações de renda dos 5.457 candidatos aprovados no vestibular da UFRGS de 2014 e os dados da Pesquisa Anual por Amostra de Domicílios (Pnad) do mesmo ano evidenciam a desigualdade no acesso ao Ensino Superior:
- Na UFRGS, 8,65% dos calouros declararam renda familiar superior a 20 salários mínimos (hoje, R$ 17,6 mil). No Brasil e na Região Sul, só 2,1% das famílias recebiam o equivalente.
- 22,7% dos aprovados eram de famílias com rendimentos de pelo menos 10 salários mínimos (R$ 8,8 mil). No Brasil, apenas 7,5% dos domicílios tinham rendimentos maiores (o percentual sobe para 9,2% na Região Sul).
- 45,9% dos novos alunos vinham de famílias com renda acima de cinco salários mínimos (R$ 4,4 mil). No Brasil, somente 22,9% dos lares ganhavam mais do que cinco mínimos. Na Região Sul, eram 30%.
- 26,4% dos calouros tinham renda familiar de até três salários mínimos (R$ 2.640). No Brasil, 52,3% dos domicílios recebiam até três salários mínimos. Na Região Sul, o percentual era de 41,3%.
As informações foram analisadas pelo professor de Economia da Universidade Federal de Pelotas Felipe Garcia, pesquisador de políticas públicas de educação, saúde e mercado de trabalho.
- Há sobre-representação dos ricos, enquanto os pobres estão sub-representados. Vale dizer que isso ocorre a despeito das políticas de cotas para o ingresso - comenta Garcia, para quem os dados suscitam diversas questões para a criação de políticas públicas de educação e de combate às desigualdades. - As respostas não são óbvias.
Garcia sustenta que, se o desejo das universidades é gerar pesquisa em conhecimento, o que pode acarretar em progresso tecnológico e crescimento econômico a longo prazo, não importaria o perfil socioeconômico dos estudantes, apenas que os melhores fossem selecionados. Mas se a promoção de oportunidades e suavização da pobreza forem prioridades, o processo de seleção de novos alunos deve ser reconsiderado.
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