Protagonista, determinante, crucial. O vocabulário dos professores varia, mas a ideia expressa é uma só: a redação é a prova mais importante para o desempenho individual do candidato no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
A pontuação da única parte dissertativa do exame varia entre o mínimo e o máximo possível: zero a mil. Isso não ocorre na parte objetiva, que segue o modelo avaliativo da Teoria de Resposta ao Item (TRI), em que pesa a coerência pedagógica das respostas do aluno na escala de dificuldade e tem o valor de cada questão definido pelo percentual de acertos de todos os participantes.
O desempenho nesta prova, portanto, não é submetido à comparação com os concorrentes e depende exclusivamente da habilidade de o estudante cumprir as competências exigidas pela banca. Apesar disso, muitos sequer tentam escrever o texto. A causa mais frequente de nota zero na redação é deixá-la em branco, à frente do segundo motivo: fugir do tema.
Ainda que pareça complexa, a correção segue critérios objetivos e possíveis de serem atendidos mediante compreensão do tema, organização, qualidade e coerência da argumentação e muito cuidado nos detalhes — cada ponto ganho na redação pode influenciar a disputa por uma vaga na universidade.
Neste guia, professores explicam a importância da prova para o desempenho final, as competências exigidas, as qualidades das redações nota mil e a presença de citações de filosofia e sociologia em todos os textos com pontuação máxima exemplificados na Cartilha do Participante de 2019. Veja nas páginas 4, 5 e 7.
Considerada pelos professores a prova mais importante do Enem, a redação é a única em que a nota depende somente do candidato. Isso porque ela não está sujeita ao modelo avaliativo da Teoria da Resposta ao Item (TRI), que leva em conta a coerência pedagógica do estudante no padrão das respostas e o percentual de acertos de todos os participantes em cada item objetivo. A pontuação no texto dissertativo, portanto, pode ser mil, caso o estudante faça tudo corretamente.
— Na disputa por cursos muito concorridos, a cada 20 pontos, o candidato deixa dezenas de concorrentes para trás — diz Ávila Oliveira, coordenador de Linguagem e Redação do Unificado.
Ele relembra o caso de duas alunas com 20 pontos de diferença na redação que ficaram a 60 concorrentes de distância na disputa pela vaga em Medicina.
— Mesmo que a redação não seja a melhor que o candidato fez na vida, terá um peso maior do que responder todas as questões objetivas. Receber 800 pontos é perfeitamente possível nesta prova, mas algo difícil de atingir em outras — completa.
Por outro lado, tirar zero no texto impede a participação no Sistema de Seleção Unificada (Sisu) de vagas em universidades públicas, no Programa Universidade para Todos (ProUni), que concede bolsas em instituição privada, e no Fundo de Financiamento Estudantil (Fies).
Depois de deixar a prova em branco, o segundo maior motivo de nota zero é fugir do tema. Em parte, isso explica a ansiedade dos alunos em prever o assunto. Mas a tentativa de adivinhação pode ser infrutífera. Em 2018, eram altas as apostas para “fake news” e foi isso que parte dos candidatos inferiu, errado, que significasse a “manipulação do comportamento do usuário pelo controle de dados na internet”.
Mariana Goulart, do Me Salva!, sugere aos alunos lerem sobre tópicos gerais, como tecnologia da informação, saúde e educação, e adverte para terem atenção ao comando da prova.
— O assunto de 2015 era a persistência da violência contra mulher. Veja bem: a persistência, não a violência apenas — ela afirma, lembrando que tangenciar o tema leva à perda de pontos.
Conforme Matheus Ávila, professor do Método Medicina e do Colégio Israelita Brasileiro, ter repertório sobre o tema só ajuda se o aluno souber relacioná-lo à tese do texto. Quem tem competências textuais e argumentativas se sai melhor do que quem sabe muito sobre o tópico, mas não tem capacidade de escrever, afirma.
Menos chance de prever o assunto
Para Dante Gonzatto, do Fênix Vestibulares, e Carlos Luzardo, do Mottola, a complexidade do tema aumentou nos últimos anos e tentar adivinhá-lo é arriscado. Para Luzardo, o melhor é pensar no modelo consolidado:
— Primeiro, o tema é predominantemente social. Segundo, a questão faz uma pergunta específica, quase sempre sobre uma realidade nacional. Terceiro, deve-se propor uma solução, uma forma de superar o problema.
Para Leonardo Jaskulski, do Fleming Medicina, estar bem informado é importante e já ter pensado ou lido sobre o tema também. O repertório bem articulado com a discussão conta, sobretudo, para atingir notas acima de 900. O essencial, ele avalia, é conhecer o próprio texto, apontar uma questão social, com causas e consequências, e fazer uma proposta de intervenção.
Oliveira, por sua vez, aprova a especulação de possíveis temas, na medida em que estimula o interesse do aluno em se informar. É improvável cair algo sobre minorias, ele prevê, mas é possível uma abordagem de interesse social vinculada à postura individual, como vacinação, maus-tratos aos animais e violência em estádios. O autor pode defender a tese que quiser, desde que seja bem fundamentada e respeite os direitos humanos, conclui.
Radiografia das cinco competências
O estudante precisa defender uma tese, com apoio de argumentos consistentes, estrutura coerente e coesa e propor uma intervenção social para o problema. O texto é avaliado com nota de zero a 200 para cada uma das cinco competências. Veja a seguir quais são elas e a análise de professores sobre o que é cobrado nessas habilidades.
1. Demonstrar domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa.
Para os professores Mariana Goulart, do Me Salva!, e Matheus Ávila, do Método Medicina e do Colégio Israelita Brasileiro, esta é a competência mais difícil de ser gabaritada. Mais de três incorreções de ortografia, gramática, sintaxe ou uso de vocabulário, por exemplo, levam à perda de pontos. Por sua vez, Carlos Luzardo, professor do Mottola e da Escola da Língua Portuguesa, acredita que o estudante tem a obrigação de fazer os 200 pontos, pois a maioria dos erros é evitável se for feita uma revisão cuidadosa.
2. Compreender a proposta de redação e aplicar conceitos das várias áreas de conhecimento para desenvolver o tema, dentro dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo em prosa.
O professor Dante Gonzatto, do Fênix Vestibulares, destaca que os temas têm ficado mais complexos nos últimos anos, apresentados em frases grandes e com muitas palavras-chave. Não basta nortear a escrita apenas por uma das palavras ou abordar o assunto tangencialmente, advertem Gonzatto e Mariana. Ávila sugere sublinhar as expressões-chave e se certificar de que estejam no cerne da redação. Leonardo Jaskulski, do Fleming Medicina, acrescenta que a compreensão e a correta abordagem da temática dependem do repertório sociocultural do estudante, o que pode ser difícil, conforme o assunto proposto.
3. Selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa de um ponto de vista.
Diz respeito a toda a organização do texto e é a mais difícil de se atingir pontuação máxima, na avaliação de Ávila Oliveira, coordenador de Linguagem e Redação do Unificado. Foi nesta competência que seus 20 alunos que tiraram nota 980 em 2018 perderam os pontos. Segundo Jaskulski, é testada a capacidade de o candidato fazer relações adequadas entre seus conhecimentos e o tema, não apenas mencionando as informações e, sim, articulando-as na discussão. A intervenção sugerida é consequência da tese defendida no desenvolvimento e já deve ter sido minimamente apresentada na introdução, diz Gonzatto.
4. Demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para a construção da argumentação.
Esta habilidade cobra a presença de mecanismos de ligação das ideias entre frases e entre parágrafos e o uso correto dos pronomes relativos e suas preposições, afirma Francis Madeira Sales, coordenador pedagógico do Fleming. A repetição excessiva e injustificada de palavras ou expressões também leva à perda de pontos e, para evitá-la, Madeira sugere o uso de pronomes, sinônimos e perífrases. Segundo Gonzatto, a perda de pontos por esse motivo decorre da desatenção. Para identificar mais facilmente os erros, ele recomenda escrever o rascunho, fazer algumas questões objetivas e deixar o texto "descansar" antes de passar a limpo.
5. Elaborar proposta de intervenção para o problema abordado, respeitando os direitos humanos.
As notas mais baixas são nesta habilidade, afirma Matheus Ávila, por falhas na exposição assertiva da proposta para solucionar o problema. Segundo ele, um erro comum é confundir proposta com efeito — e descrever apenas este. Por outro lado, Mariana considera fácil cumprir a exigência, desde que sejam expostos os cinco itens da intervenção: agente, ação, meio de aplicação, efeito/finalidade e detalhamento. Para obter nota 200, os cinco elementos devem também ser coerentes com o problema discutido ao longo de todo texto, completa Luzardo.
Objeto do desejo: a nota mil
Apenas 55 candidatos tiveram nota máxima na redação do Enem de 2018. No outro extremo, 112 mil tiraram zero. Não é difícil entender por que obter os mil pontos na única prova dissertativa do exame parece, como define Carlos Luzardo, uma utopia. O professor do Mottola explica que não é por falta de capacidade dos alunos que esse escore é pouco provável:
— O tempo é curto, o espaço é curto, o tema é surpreendente. E, muitas vezes, o aluno com nota mil pode ter ido mal em outra prova, porque ele dedicou mais tempo à redação.
Para Ávila Oliveira, do Unificado, as redações com pontuação máxima exibidas na Cartilha do Participante do Enem são textos de excelência mesmo entre os de nota mil, e não quer dizer que só aquele padrão possa atingir a marca.
— Uma redação simples pode tirar mil, desde que cumpra todas as exigências da banca — diz.
Três alunos do professor Dante Gonzatto, do Fênix Vestibulares, conseguiram a sonhada nota. Além de atenderem rigorosamente o que a banca pediu, ele percebe como traço comum nestas redações o alto nível de qualidade em correção gramatical, estrutura do texto, compreensão do tema e sua associação ao repertório cultural do autor.
Sobre a correção gramatical, Gonzatto reconhece que é natural, ao escrever sob pressão, o candidato “escorregar” três vezes ou mais — até dois erros não há penalização. Quanto ao tema, ele avalia que a complexidade aumentou nos últimos anos.
— A tendência é ter uma frase muito grande, com várias palavras-chave. Nortear a redação por apenas uma das palavras vai gerar perda de pontos — analisa. Em relação ao repertório cultural, ele adverte que a banca percebe e desconta nota se o aluno tentar “encaixar forçadamente” uma frase decorada qualquer.
Por fim, Gonzatto considera as redações nota mil impecáveis no “projeto de texto”. Na estrutura bem elaborada, a tese defendida no desenvolvimento e minimamente apresentada na introdução conduz com coerência à proposta de intervenção do final, resume o professor.
Cada professor tem uma estratégia preferida de gerenciamento do tempo no dia da redação. Há, porém, unanimidade em alguns pontos, como as recomendações de ler o tema logo de início, mesmo que se pretenda fazer outra prova antes, e não passar a limpo imediatamente depois de terminar o rascunho. Afastar-se um pouco do texto enquanto faz questões objetivas ajuda a ter um olhar mais crítico na volta. Confira um resumo das etapas descritas pelos professores.
1. Identifique o tema e o comando
Leia com calma, sublinhe as palavras e expressões-chave e tente identificar qual a instrução específica. Se o tema for acessível, continue até o passo três. Caso seja difícil, responda antes a prova objetiva que considerar mais fácil.
2. Planeje a estrutura
Faça um esquema de como vai organizar o texto. Você deve ter clareza sobre o seu ponto de vista, os argumentos e a proposta de intervenção. Defina a ordem de apresentação das ideias em uma sequência lógica.
3. Escreva o rascunho
Dê atenção ao encadeamento de sua opinião. Certifique-se de que o contexto e as palavras-chave estejam no início. Lembre-se de que a solução para o problema deve estar conectada com todo o desenrolar da tese.
4. Revise a versão preliminar
Faça algumas questões objetivas antes de reler o rascunho. Ao revisar, confira se estão facilmente identificáveis o problema, a tese, os argumentos, os cinco itens da intervenção e o encadeamento entre eles. Corrija a linguagem.
5. Ajuste os detalhes e passe a limpo
Releia mentalmente cada frase antes de copiá-la. Procure erros, imprecisões ou falhas de nexo cometidos por distração. Não é mais o momento de grandes mudanças, por isso, só passe a limpo depois da revisão atenta do rascunho.
Fontes: Ávila Oliveira, coordenador de Linguagem e Redação do Unificado; Carlos Luzardo, professor do Mottola, da Escola da Língua Portuguesa e do Cetec; Dante Gonzatto, professor do Fênix Vestibulares; Francis Madeira Sales, coordenador Pedagógico do Fleming Medicina; Leonardo Jaskulski, professor do Fleming Medicina; Mariana Goulart, professora do Me Salva!, e Matheus Ávila, professor do Método Medicina e do Colégio Israelita Brasileiro.