Após cortar 30% do orçamento de universidades federais de todo o país, o Ministério da Educação (MEC) apresentou a reitores, no último dia 17, o Future-se, um programa que propõe mudar o jeito como as universidades públicas são financiadas. Hoje, o dinheiro vem do governo federal. Agora, a ideia é que as instituições busquem verba junto à iniciativa privada para depender menos do Estado.
GaúchaZH encaminhou 10 questionamentos ao MEC para entender as mudanças que devem ocorrer nas universidades federais do Brasil. O governo federal diz que as instituições não perderão autonomia. Reitores esperam o contrário.
A grande mudança do Future-se é trazer para dentro da universidade as organizações sociais (OS) – empresas privadas sem fins lucrativos que recebem dinheiro do governo federal para oferecer serviços públicos. Criadas no governo de Fernando Henrique Cardoso, elas têm poder para contratar profissionais via CLT e tocar atividades do Estado, sem visar ao lucro. Há muitos exemplos de parcerias entre OSs e prefeituras, que contratam esse tipo de empresa para administrar creches ou postos de saúde mental.
O ministro da Educação, Abraham Weintraub, já afirmou que as OSs poderão contratar professores universitários via CLT, sem concurso público. Isso já é possível hoje em docentes de contrato temporário de até dois anos, que passam por um processo seletivo simplificado.
A dúvida de reitores, hoje, é: se o MEC pretende trazer organizações para atuar dentro da universidade, com poder para influenciar em ensino, pesquisa e extensão, quem vai fazer o quê? A universidade vai perder autonomia? Em nota conjunta publicada na segunda-feira (29), a Andifes, associação de reitores de universidades federais de todo o país (leia a carta completa aqui), afirma que, com contratos firmados junto a organizações sociais, "universidades ver-se-iam profundamente atingidas em sua autonomia administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e mesmo em sua autonomia didático-científica". A entidade destaca que o Future-se esbarra em 16 leis vigentes, sobretudo aquelas que exigem que a União assegure recursos suficientes para que universidades funcionem.
Questionado por GZH, o MEC afirmou que "as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial. Cabe esclarecer que o papel da organização social é o de apoiar e dar flexibilidade às instituições federais de Ensino Superior. Elas não irão substituir o papel desempenhado pelas universidades. As organizações sociais devem fortalecer as ações do Future-se.
As ações de ensino, pesquisa, extensão, empreendedorismo e inovação continuarão sob responsabilidade da universidade ou do instituto federal", informou a pasta por e-mail. Sobre a possibilidade de as OSs definirem as pesquisas universitárias, o ministério disse que "as instituições federais têm autonomia para definir suas próprias linhas de pesquisa".
Nesta terça-feira (30), em entrevista ao programa Gaúcha Atualidade, Weintraub falou que o objetivo do Future-se é aumentar a verba privada no orçamento das universidades federais.
— É a possibilidade de as universidades públicas buscarem parceria e fonte de recurso da iniciativa privada, mas também de se tornarem celeiros de pequenas startups. Isso tudo com imóveis do governo cedidos pelo Ministério da Economia, que vão ser utilizados como recurso. É um sopro do que é feito no mundo, adaptado ao Brasil para salvar as universidades federais.
Weintraub afirmou que é contra cobrança de mensalidade de universidade pública.
— Quantos alunos de fato têm famílias que ganham mais de cinco salários mínimos por mês? Esse universo é inferior a 10% dos alunos. Eu prefiro bater onde vai dar mais resultado, vou gerar de recurso cerca de R$ 3 bi (bilhões) por ano, acabando com alguns privilégios.
Tira-dúvidas
O que é o Future-se?
Programa criado pelo MEC para fazer as universidades federais serem menos dependentes do dinheiro do governo federal. A ideia é que elas busquem verba junto à iniciativa privada e que atividades do dia a dia sejam compartilhadas com organizações sociais (OSs). Há outras ações, com foco em reduzir as barreiras para que universidades firmem parcerias com empresas. Ainda haverá um fundo de R$ 100 bilhões destinado às universidades federais que participarem, cuja divisão será um por sistema de cotas, ainda não detalhado.
O que as OSs poderão fazer?
O MEC não deixou claro quais serão os limites das organizações sociais. Questionado por GZH, o MEC afirmou, por e-mail, que as universidades têm autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial. Até agora, sabe-se que poderão ajudar no dia a dia de aulas, pesquisa e extensão; cuidar de dinheiro relacionado a investimentos em empreendedorismo e inovação; ajudar no aluguel e venda dos imóveis das universidades; ajudar a organizar intercâmbios de professores e alunos com outros países; tocar atividades do dia a dia, como limpeza e manutenção. No Future-se, as OSs poderão contratar professores universitários sem concurso público. Hoje, professores substitutos são contratados por processo seletivo simplificado, pela própria faculdade, e podem trabalhar por no máximo dois anos. Quem fiscaliza se as OSs estão trabalhando direito é o governo.
O que é extensão universitária?
É o nome dado a projetos da universidade que buscam beneficiar a população que não é universitária. São projetos sociais, eventos culturais, ciclos de palestra e clínicas de saúde gratuitas, por exemplo. A ideia é que esse tipo de iniciativa também traga dinheiro à universidade – uma das sugestões é inscrever projetos em editais da Lei Rouanet para que empresas os banquem, mediante isenção fiscal. Professores, portanto, teriam de buscar financiamento junto a empresas privadas, assim como artistas fazem.
Universidades públicas vão cobrar mensalidades?
Não haverá cobrança, segundo o ministro da Educação, Abraham Weintraub. O que mudará é que as universidades devem buscar novas formas de conseguir dinheiro para se sustentar.
De onde virão os R$ 100 bilhões?
Do fundo formado por imóveis vendidos e alugados, do dinheiro da Lei Rouanet, de fundos patrimoniais, dos patrocínios de empresas privadas, entre outros.
Como os R$ 100 bilhões serão repartidos entre as universidades?
O valor, segundo o MEC, seguirá alguns critérios - dentro os quais projetos de inovação e pesquisa, startups e empresas júniores. "As universidades irão receber os recursos de acordo com sua capacidade de gerar valor agregado para a sociedade. No entanto, para mitigar eventuais desequilíbrios, o Ministério da Educação poderá destinar recursos para unidades que tenham reduzido potencial de captação de recursos, como forma de ação supletiva", informou a pasta.
Como o dinheiro será levantado com empresas privadas?
1) Alugar ou vender imóveis do governo e aplicar o dinheiro em um fundo imobiliário. A proposta do MEC prevê o repasse de R$ 50 bilhões em imóveis da União pelo Ministério da Economia ao MEC. Hipoteticamente, o governo repassaria um terreno para a iniciativa privada construir um shopping e os lucros desse negócio iriam para o fundo. Um levantamento dos imóveis "parados" e que serão transferidos para o programa está em andamento.
2) Permitir que empresas coloquem o nome em salas, prédios e campi de faculdades (assim como estádios de futebol ou cinemas), em troca de verba para a universidade. A estratégia é comum nos Estados Unidos.
3) Criar ações de cultura em programas de extensão que possam buscar financiamento na Lei Rouanet, por meio de museus, feiras e apresentações artísticas. A ideia também é que espaços da universidade sejam alugados por empresas para realizar eventos.
4) Ao criar novas tecnologias com base em estudos, professores poderão vender patentes e, com isso, lucrar com a pesquisa. O ministro já afirmou que docentes "poderão ficar ricos".
5) Incentivar os fundos patrimoniais (também chamados de endowment).
Como funciona um fundo patrimonial?
O fundo é uma espécie de poupança aplicada na bolsa de valores. Um doador (empresa ou ex-aluno) destina uma verba à instituição, que investe o valor no mercado financeiro. Em seguida, usa apenas parte dos rendimentos para financiar pesquisas ou fazer reformas _ e a outra parte do rendimento volta para o bolo inicial. A Faculdade de Engenharia da UFRGS já tem um fundo patrimonial, conforme mostrou GZH em março.
Quais serão as outras ações?
- Premiar com salário extra os professores com bom desempenho
Serão criados indicadores de produção científica, como publicação de pesquisas em revistas internacionais de alto impacto, para remunerar os professores. Além disso, eles poderão receber dinheiro por patentes e pela participação em startups e em parcerias com a iniciativa privada. Demais professores não serão punidos. - Ranking de universidades
Criação de um ranking de instituições federais de Ensino Superior, com premiação para as que forem mais eficientes nos gastos. Os critérios não foram detalhados. - Oferta de cursos com empresas
Permitir que departamentos das universidades façam parcerias com a iniciativa privada para oferta de cursos, por exemplo, e recebam recursos para isso. - Aliança de universidades
Adoção de consórcios de universidades para diminuir custos na aquisição de equipamentos. - Mais startups
Incentivar a criação e a instalação de startups (empresas com base tecnológica que podem crescer em escala), com aplicação de dinheiro de fundo destinado a isso. - Teto de gastos
Assim como governo e prefeituras têm um teto de gastos, a ideia é que universidades tenham um limite de dinheiro a ser gasto anualmente com seus funcionários. - Mais EaD
Facilitar o acesso a disciplinas online. - Bolsa-atleta
Oferecer a alunos atletas bolsas em universidades estrangeiras.
As universidades são obrigadas a participar?
Não. No entanto, quem ficar de fora terá o financiamento limitado ao teto de gastos públicos. Segundo o MEC, "na prática, elas deixarão de participar de um projeto que fortalecerá sua autonomia financeira e permitirá o aumento da captação de receitas próprias. Não foi divulgado ainda um plano de transição para as universidades que optarem por aderir ao modelo – o MEC, questionado pela reportagem, diz que isso será detalhado após o término da consulta pública.
Quer opinar?
O governo federal está com consulta pública aberta até 7 de agosto. Em seguida, a proposta será encaminhada ao Congresso Nacional – parlamentares devem avaliar e podem mexer nas mudanças. A consulta é pela internet, neste link.