Uma sala abarrotada de alunos. À frente, o professor assume o protagonismo da aula que tem ares de espetáculo: o assunto é sério, mas abordado entre piadas e métodos para fixação do conteúdo. De suas carteiras, os estudantes se mantêm em silêncio (só interrompido pelas eventuais risadas), anotando tudo o que o professor diz.
AppProva e ZH oferecem preparação gratuita para o Enem
Metade dos jovens do Brasil dependem do governo para cursar universidade
Enem revela desigualdade educacional no país
Por muitos anos, esta descrição deu conta de definir os chamados "aulões" de cursinhos pré-vestibulares. Mas ela parece fazer cada vez menos sentido. A crescente adesão ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) como forma de ingresso no Ensino Superior alterou a dinâmica dos cursos preparatórios, que tiveram não apenas de reformular seus materiais didáticos, mas também repensar as tradicionais aulas a partir de um novo desafio: a autonomia do aluno.
– O Enem é uma prova que requer o desenvolvimento de capacidades de leitura, escrita, interpretação e resolução de problemas de maneira mais intensa do que os vestibulares, que cobram assuntos mais específicos e de forma mais direta. Assim, os habituais macetes, refúgios seguros dos professores de cursinho, passaram a não ter mais tanto valor. E os estudantes começaram a selecionar melhor o grupo de professores para os atender – afirma Roselane Costella, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista em Enem.
No Estado, a reviravolta nos cursos preparatórios ocorreu principalmente nos últimos três anos, a partir do anúncio de que a UFRGS destinaria 30% de suas vagas ao Sistema de Seleção Unificada (Sisu), baseado na nota do Enem – as outras 70% seguem disputadas por meio do processo seletivo próprio. Instituições gaúchas como a Universidade Federal do Rio Grande (Furg) e a Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) já estão entre as que têm o Sisu como a única forma de ingresso de novos alunos.
Diante de uma lista que só aumenta, os cursinhos tiveram de correr atrás. E mais: aprender a trabalhar com prioridades.
– Fizemos uma mudança drástica. Trocamos o material que produzíamos pelo desenvolvido por um grupo educacional especializado em Enem. Nossos professores participam constantemente de workshops e encontros em que são desenvolvidas e discutidas questões no formato do exame. Além disso, aumentamos o número de simulados para trabalhar a questão do tempo de prova, que é o grande desafio do Enem. Após o exame nacional, colocamos todo o foco sobre a prova de vestibular da UFRGS – conta Gilberto Kaplan, diretor do curso Universitário, um dos maiores do segmento em Porto Alegre.
Neste novo cenário, devem ser contemplados os distintos interesses dos alunos. Eduardo da Cruz, 20 anos, por exemplo, frequenta as aulas do Universitário desde o ano passado e busca uma vaga no curso de Medicina da UFCSPA a partir da nota do Enem ou um lugar na UFRGS, por meio do processo seletivo próprio da universidade. Ou seja: ele precisa estar preparado para o Enem e também para o vestibular da maior federal do Estado.
– O conteúdo é o mesmo, mas o preparo para as provas é diferente. Até o Enem, temos uma maior discussão e contextualização dos assuntos, o que se vê principalmente nas aulas de filosofia e sociologia. Após, quando o treinamento é voltado para a UFRGS, até pelo fato de o tempo ser mais curto, as aulas são mais enxutas, mais expositivas – compara o candidato.
Nada de macetes e foco nas habilidades
Com o Enem na mira, os livros que passaram a ser utilizados têm mais textos _ assim se trabalha a capacidade de interpretação do aluno. Eles trazem leituras e assuntos complementares ao conteúdo ensinado, provocando a contextualização dos conhecimentos. As questões colocadas para resolução derivam mais de provas do Enem do que de vestibulares. E, uma grande diferença: boa parte dos exercícios é resolvida em sala de aula. É o que garante a discussão ampliada dos temas e a postura mais ativa dos alunos, agora convidados a participar da construção do raciocínio.
– Na preparação para o vestibular, a habilidade treinada é a de reprodução do que o professor passa em sala de aula. Quando o foco é o Enem, o professor tem de preparar o aluno para que ele mostre certas habilidades que são cobradas na prova. Elas passam pela capacidade de construção, raciocínio e elaboração, de forma que o aluno tem de ser estimulado a fazer parte do processo do aprendizado – avalia Fábio Mendes, doutor em filosofia e autor de cinco livros sobre o desenvolvimento da autonomia dos estudantes, entre eles, Vestibular e Enem 100% – Método de estudo, descanso e lazer.
Turmas menores, alunos mais envolvidos
Em Santa Maria, a readequação dos cursos preparatórios foi impulsionada pela adesão gradativa da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) ao Sisu – a partir de 2017, o sistema unificado passa a ser a única forma de ingresso na universidade. A mudança portanto, é de se imaginar, foi grande. Mas não ocorreu sem que se levasse em consideração o elevado número de alunos que pretendem prestar vestibulares em instituições particulares.
– Temos turmas totalmente voltadas para o Enem e outras em que os alunos também pretendem prestar provas de vestibular. Mas, no geral, podemos dizer que o formato dos livros mudou e que as aulas estão muito mais relacionadas aos assuntos da atualidade. E temos ainda turmas que são chamadas de núcleos: menores e formadas por candidatos dos cursos mais concorridos – conta Ana Paula Bettega, coordenadora pedagógica do curso Riachuelo, em Santa Maria.
O enxugamento das salas de aulas é uma das exigências para que cursinhos possam acompanhar as mudanças impostas pelo Enem, diz Fábio Mendes:
– O modelo de aulões com muitos alunos ficou questionável. Em turmas com muitos alunos, os professores não têm como desenvolver a autonomia de cada um deles. Os alunos precisam discutir assuntos, trabalhar algum material divididos em grupos, e não mais simplesmente anotar no caderno aquilo que o professor passa no quadro.
O perfil mais ativo dos alunos está refletido na maior procura por meios de informação complementares ao aprendizado em sala de aula. A exemplo estão os canais de videoaulas que pipocam na internet, arrebanhando milhares de seguidores. Um deles é o aulalivre.net – idealizado em 2012 por uma startup maturada na incubadora da ESPM em Porto Alegre –, que já tem mais de 600 mil inscritos em todo o país. E, claro: até eles tiveram de se adaptar às exigências do preparo para o Enem.
– Percebemos que, assim como os cursinhos presenciais, somos fundamentais para transformar o ensinamento do Ensino Médio, ainda bastante formal e repassado por meio de disciplinas separadas, em um conhecimento interdisciplinar, aos moldes do Enem. Em função do exame nacional, nos últimos anos estamos trazendo muitos conteúdos de atualidade – afirma Juliana Marchioretto, sócia do Aula Livre.
Para Roselane Costella, que coordena um grupo de pesquisa na UFRGS focado em Enem, o processo de adaptação das instituições às competências cobradas nas provas começou e está evoluindo rapidamente. Mas ainda há um longo caminho pela frente:
– O Enem modificou a forma de se pensar o ensino. Não estou afirmando que é a ideal, mas posso garantir que é muito melhor do que as metodologias propostas em provas classificatórias de diferentes universidades. Os cursinhos que não se adaptaram a esta metodologia enfraqueceram, e os professores que desqualificaram esta prova quando ela foi implementada tiveram, certamente, de correr atrás do prejuízo, qualificando-se mais tarde. Estamos diante de uma nova realidade, que precisa ser reconhecida.