Outro dia um mensageiro veio entregar aqui em casa uma caixa grande e chata enviada por Alain Ducasse, o chef francês dono de 17 estrelas do guia Michelin. Ela continha seis discos de chocolate salpicados com nozes e frutas secas; uma base de chocolate, uma vara e uma coroa triangular; um par de luvas de tricô brancas e instruções de como transformar tudo aquilo em uma árvore de Natal.
Essa é a temporada do ano em que a França celebra o chocolate, presente que, mesmo comprado de última hora, é infalível e agrada a todos. Durante o mês de dezembro, todo chef, confeiteiro e chocolatier se sente estimulado a fazer alguma coisa com a substância, seja simples, espetacular ou engraçada.
A Hugo & Victor de Paris transformou o tradicional rocambole natalino "bûche de Noël" ("Tronco de Natal") em uma caixa com dois livros antigos feita com seis tipos diferentes de chocolates, que inclui uma base de biscuit, mousse de chocolate tanzaniano, creme de chocolate peruano e nougat. A casquinha dura externa é decorada com letras douradas. A delícia, que não contém glúten, custa mais de US$100.
Em novembro, a empresa nacional de trens pintou um vagão de marrom e o levou de estação em estação de Paris; lá dentro, uma exposição explicava os passos da fabricação do chocolate. Os visitantes não só ganharam amostras como a chance de comprar as opções ao leite e branco feitas por Yves Thuriès, bicampeão do título de "melhor artesão da França".
Na verdade, o desafio do consumidor francês é um só: decidir qual é o melhor chocolate. O problema é que duas novas tendências complicaram essa escolha.
A primeira é que, nos últimos trinta anos, o chocolate na França adquiriu um status absurdo de exclusividade, como acontece nos EUA e no resto do mundo. Chocólatras passaram a discutir as barras com a mesma paixão e o vocabulário usado para os vinhos finos, comentando composição do solo, safras, blends e grands crus.
Curiosamente, na contramão desse movimento, a arte da fabricação do chocolate francês foi rebaixada em 2003, quando a União Europeia decidiu que os fabricantes poderiam substituir até cinco por cento da manteiga de cacau em seus produtos por gordura vegetal e, ainda assim, chamá-lo de chocolate. Os connoisseurs fizeram protestos, choraram, mas não conseguiram nada. As grandes empresas, por sua vez, comemoraram, pois passariam a vender mais gastando menos.
É aí que entra Ducasse, que decidiu se arriscar no ramo dos chocolates finos e já comemora o primeiro Natal na atividade.
Há cinco anos ele começou a esquadrinhar a Europa em busca de torradores e máquinas de confecção de chocolate antigas e enviou Nicolas Berger, seu chef confeiteiro de longa data, para Lyon para um treinamento rápido em torrefação e confecção. Por fim, transformou uma mecânica antiga perto da Place de la Bastille em uma fábrica de chocolate, showroom e loja em aço e vidro.
Ducasse vem sendo muito elogiado pela imprensa francesa por se aventurar em um novo território culinário da maneira mais difícil - a partir do zero -, mas pouco se fala do produto final.
Quando a caixa de bombons enviada por ele chegou à minha casa, assim como amostras de outros chocolatiers, convidei três amigos para uma degustação informal. Um deles, crítico gastronômico, chegou com três barras com embalagem de aparência vintage da Bonnat, um pequeno estabelecimento no centro da França, fundado em 1884, que diz ser a "chocolaterie" familiar mais velha do mundo.
Talvez tenha sido o efeito do Sauternes que abrimos para acompanhar, mas decidimos por unanimidade que seu Apotequil, feito com 75 por cento de cacau, é o melhor chocolate que já comemos na vida.
Por isso, decidi visitar Stéphane Bonnat em Voiron, um vilarejo perto de Grenoble, no sopé dos Alpes.
Bonnat, de 47 anos, pode muito bem ser o Willy Wonka francês. Maluco pelos equipamentos antigos, ele é obcecado por pureza, sendo um dos únicos fabricantes franceses a utilizar apenas manteiga de cacau como emulsificante.
Ao entrar na sala de operações por uma porta giratória, me deparei com aquele aroma inconfundível, tão forte que quase me fez ajoelhar. Bonnat explicou que as sementes de cacau são inspecionadas para verificar a presença de insetos ou bolor; a seguir, são limpas e torradas em uma máquina antiga vermelha e prateada, que também separa a casca do cerne. Depois são moídas, liquefeitas, refinadas, misturadas, conchadas (processo que retira o amargor da massa), suavizadas e moldadas. Os bombons são então retocados ou enfeitados à mão conformem saem da esteira.
Perguntado sobre o trabalho do concorrente, Bonnat despistou: - Ducasse tem muita coragem para dizer que é chocolatier porque essa é a arte mais difícil do mundo. Eu adoro comer em bons restaurantes, mas isso não significa que amanhã eu abra um e já ganhe uma estrela. Cada um tem sua especialidade; a minha é fazer chocolate, a dele é ser chef-
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