No imaginário de quem vive no século 21, o maior exemplo — se não o único — da decisão de retirar as mamas após testagem genética é certamente Angelina Jolie.
O ano era 2013 quando a atriz e ícone de beleza sacudiu o mundo ao fazer uma mastectomia preventiva bilateral, depois de testar positivo para a mutação genética em BRCA1, a qual fazia com que tivesse 87% de chances de desenvolver câncer de mama e 50% de câncer de ovário, segundo seus médicos. Contou a favor dessa escolha o histórico da mãe, a atriz Marcheline Bertrand, que morreu aos 56 anos após lutar contra o câncer de mama durante sete anos.
Quase uma década depois, a psicóloga de Porto Alegre Jéssica Mras Garcia também foi confrontada pelo diagnóstico de mutação genética e optou pela mastectomia, aos 31 anos. Quando sua mãe teve câncer de ovário, somado ao fato de que a avó materna havia morrido de câncer de pâncreas, os médicos suspeitaram de uma mutação genética em BRCA2.
Essa alteração no DNA está relacionada a uma maior predisposição para câncer de mama, ovário, trompas, pâncreas, próstata e, possivelmente, de pele. Como é hereditária, foi recomendado que as mulheres da família de Jéssica fossem testadas. O resultado deu positivo para ela e sua mãe:
— Quando o teste deu positivo, a primeira coisa que pensei foi: “Eu não quero passar pelo que minha mãe está passando”, porque foi muito ruim, dor física, psicológica e autoestima abalada. E os médicos me alertaram: “Você já tem mais de 30 anos, tem histórico familiar e mutação, as chances de vir a ter um câncer de mama são altas” e orientaram que, quanto antes eu retirasse, melhor seria.
A realidade do “depois”
Na sala de seu apartamento com paredes cor-de-rosa e coabitado por uma cadela e três gatos amorosos, Jéssica está em paz com a decisão. Fez a operação em agosto e contou com uma rede de apoio de amigos e familiares que não deixou que dormisse sozinha uma noite sequer durante a recuperação. Mas o alento deles e o alívio de poder fazer, ao menos, alguma coisa contra a possibilidade de vir a ter um câncer não neutraliza toda a dor do processo.
— Não imaginei que me abalaria tanto quanto me abalei quando me vi pela primeira vez no espelho, sem peito, reta. Fiquei muito mal. Gostava do formato e tamanho do meu peito natural, então foi um baque, cheguei a me perguntar: “Meu Deus, o que foi que eu fiz?”. Agora que estou passando pelo processo de reconstrução mamária, já estou achando bonito — diz a paciente.
No dia em que conversamos com Jéssica, ela contou que marcará em breve a cirurgia plástica definitiva, quando são colocadas as próteses de silicone e feita a simetrização dos seios. No momento, há expansores dentro de seu peito — dispositivo que é enchido com soro fisiológico, um pouco mais a cada semana, utilizado para preparar a pele e a musculatura para a reconstrução.
Também foi recomendado que ela retire os ovários, mas mais tarde, por volta dos 40 anos, já que agora representaria uma menopausa precoce e a impossibilidade de engravidar de forma natural, caso deseje. Tanto essa perspectiva quanto as cicatrizes já não a incomodam tanto:
— É uma parte dolorida, mas importante e me lembra que sou muito corajosa e forte. Quanto às cicatrizes, realmente não me importo, acho que, assim como as minhas tatuagens, elas também contam uma história.
Sentimentos na balança
Manter as emoções equilibradas significa poder transitar por todas elas, tristeza, medo, preocupação, esperança, confiança, sem estancar uma delas, observa a psico-oncologista Lucy Bonazzi, vice-presidente do Imama. É um desafio diário, mas essencial para quem é testado e recebe o diagnóstico de uma mutação genética que aumenta as chances de ocorrência de câncer de mama — 50% dos casos são relacionados a mutações de BRCA1 e BRCA2, mas além dessas há cerca de 15 outras alterações possíveis.
De acordo com a psicóloga, o desafio maior é buscar se equilibrar entre sentimentos de medo e esperança que estão sempre presentes:
— O diagnóstico de câncer de mama e a mastectomia redutora de risco requerem um grande esforço de adaptação para manter a autoestima e autoimagem, que são conceitos que se relacionam com o bem-estar, ou não, de uma pessoa consigo mesma. Sempre digo às pacientes que, durante o tratamento, tentem enaltecer e pôr em evidência o quão bem estão lidando com um dos maiores desafios que existe para uma pessoa, que é a busca do restabelecimento de sua saúde.
Tema ainda gera inseguranças
A médica geneticista Patrícia Prolla, professora de genética da UFRGS e do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e médica do grupo Oncoclinicas, a convite de Donna, responde algumas das principais dúvidas sobre o assunto.
Quem tiver a mutação genética terá câncer?
Não. De todos os cânceres que existem, cerca de 10% são hereditários, ou seja, a causa predominante de sua ocorrência é uma mutação genética. Essa mutação coloca o indivíduo em um risco muito maior de desenvolver câncer do que a média das pessoas da sua idade, mas não é uma “sentença”.
— Não é certo que as pessoas que têm alteração em BRCA2 e BRCA1 vão ter câncer de mama, mas o risco é maior. Por exemplo: em uma mulher gaúcha de 30 anos, o risco de vir a ter câncer de mama ao longo da vida é de 10%. Já para quem tem uma alteração em BRCA, esse risco vai para 60% a 80% — descreve a médica.
Também não é certo que ela precisará fazer a retirada das glândulas mamárias, já que as decisões nesses casos são talhadas de acordo com a demanda da paciente. Uma alternativa à mastectomia é fazer exames todos os anos e retirar eventuais lesões precoces com cirurgias o mais conservadoras possível, segundo Patrícia.
A decisão de optar ou não pela cirurgia também tem a ver com a forma como a pessoa lida com incertezas na sua vida e com o que se sente confortável ou não:
— A melhor opção depende muito de como a mulher encara riscos. Tem pessoas que não conseguem dormir à noite imaginando: “ah, tenho ao menos 60% de chance de ter câncer de mama”, sentem que precisam retirar, pois não aguentariam conviver com esse risco. Já outras mulheres dirão: “olha só, tem 40% de chance de eu nunca ter câncer de mama” e sentirão que não vale a pena fazer uma operação que vai impedi-las de amamentar e pode reduzir a sensibilidade das mamas e mamilos e trazer outras complicações — afirma.
A escolha reside muito naquilo que é mais confortável e concebível para cada indivíduo, reforça Patrícia, já que estudos na área têm mostrado que, se comparando mulheres que fizeram a cirurgia e outras que não fizeram, mas realizaram exames detalhados regularmente, ambos os grupos têm a mesma taxa de sobrevivência.
Quais são os sinais de alerta?
Há três principais fatores que acendem o alerta de suspeita de predisposição hereditária ao câncer. Primeiro, se o câncer aparece mais precocemente que o de costume. No RS, por exemplo, a média de idade do aparecimento do câncer de mama é de 55 a 60 anos. Portanto, se uma mulher tiver a doença aos 35 ou 40 anos, é preciso pensar na possibilidade de seu câncer ser hereditário.
Também é preciso prestar atenção caso ocorra mais de um tumor — às vezes os dois aparecem ao mesmo tempo, noutras eles vêm em sequência.
— Por exemplo, ter câncer na mama esquerda e na mama direita, ou então câncer de mama e câncer de pâncreas etc — diz a médica.
O terceiro é quando a pessoa com câncer tem uma história familiar da doença, como é o caso de Jéssica, cuja avó e mãe tiveram tumores.
As pessoas não juntam as coisas, nem todo mundo pensa “Ah, meu tio que teve câncer de próstata, minha avó de pâncreas, são tumores diferentes, não tem nada a ver”, quando a verdade é que pode ter a ver. Cada membro que tem a mutação na família pode ter um tipo diferente de câncer – detalha Patrícia.
Quem pode testar?
No sistema privado, há cerca de 10 anos o teste genético é oferecido para pacientes que têm câncer e que possuem algum dos três fatores de suspeita descritos acima, explica Patrícia. Já para pacientes que não têm câncer, mas o desejo de fazer o teste, a única forma é pagando cerca de R$1,5 mil.
Pelo SUS não há testagem, a única exceção vem de uma portaria assinada neste mês pelo Ministério da Saúde, que determina que pacientes que têm câncer de ovário em nível avançado tenham acesso a um medicamento específico que aumenta suas chances de sobrevida — a quimioterapia com o uso de olaparibe. Só que para terem acesso, devem, antes, fazer o teste genético. Segundo Patrícia, ela e a Rede Brasileira de Câncer Hereditário, da qual faz parte, tentam dialogar com o Ministério:
— Se vamos ter teste no SUS para quem já tem câncer de ovário metastático, como forma de definir o uso de uma droga de alto custo, por que não podemos ter o teste para prevenção? A portaria também não explica bem qual a metodologia para essa testagem e não fala sobre fazer teste nos familiares, então estamos fazendo esforços para que o Ministério entenda esse problema como uma linha de cuidado, mostrando que o teste é só o primeiro passo. Quem tem uma mutação genética herdada deve ter um acompanhamento diferenciado por toda vida.