Patrícia Lima, especial
De todas as batalhas travadas pelas mulheres no caminho da liberdade e dos direitos iguais, uma seguiu invencível até pouco tempo. Nenhuma de nós, por mais revolucionária que fosse, jamais conseguiu atrasar em um minuto sequer o relógio biológico. A possibilidade de perder a fertilidade, que torna-se mais real à medida em que envelhecemos, é um fantasma que assombra cada vez mais mulheres que desejam adiar a maternidade em nome de seus objetivos pessoais e profissionais. Nosso poder de decisão em todos os aspectos da vida é cada vez maior, mas não há nada que possamos fazer para que os óvulos que nasceram conosco não envelheçam. Ou não havia.
Descoberto mais ou menos com os avanços da fertilização in vitro, o congelamento de óvulos se tornou viável há pouco mais de 20 anos, quando a tecnologia passou a permitir a preservação das células com eficiência e segurança. A técnica foi difundida para conservar a fertilidade de pacientes oncológicas, cujos ovários são atingidos pelos tratamentos de quimioterapia. Congelando óvulos antes de começar as sessões de quimioterapia, radioterapia e até mesmo de cirurgias, as mulheres que enfrentavam o câncer não perdiam a esperança de ter filhos biológicos depois da doença.
A eficiência da técnica abriu a possibilidade para o que é chamado pelos especialistas de “congelamento social”, ou seja, feito por mulheres saudáveis que desejam adiar a maternidade. Se colhidos até os 35 anos, os óvulos apresentam boa qualidade e as chances de resultarem em embriões saudáveis são grandes. Mesmo pacientes com mais de 35 anos conseguem guardar óvulos saudáveis, embora eles tendam a amadurecer em menor quantidade com o avanço da idade.
Com a ampulheta dos gametas suspensa, as mulheres podem priorizar suas carreiras, seus projetos pessoais ou ainda aguardar a chegada de um parceiro ou parceira para encarar o sonho de formar uma família com filhos. Sem pressa e sem pressões – afinal, os médicos concordam que o útero não envelhece no mesmo ritmo dos ovários e uma gestação saudável é possível até em mulheres na faixa dos 50 anos.
Aos poucos, mulheres e casais vão descobrindo as vantagens que a técnica representa. O ginecologista e especialista em reprodução assistida Carlos Link, sócio-diretor da clínica ProSer, em Porto Alegre, viu crescer em impressionantes 223% a procura por congelamento de óvulos no primeiro semestre de 2019, em comparação com o mesmo período do ano passado. Mesmo assim, segundo ele, o método ainda é pouco conhecido.
– É papel do ginecologista ou do oncologista informar a mulher sobre essa possibilidade. Mas ainda são poucos os médicos que conhecem e recomendam a técnica. A imensa maioria das pacientes que chegam aqui vêm por indicação de amigas ou familiares que também fizeram o congelamento – afirma Link.
Normalmente, as mulheres chegam na clínica para congelar com mais de 35 anos. O ideal, porém, seria que congelassem antes dos 35, para preservar a qualidade do óvulo.
MARIANGELA BADALOTTI
médica ginecologista
Segura, rápida e com baixíssima ocorrência de reações adversas, a técnica também esbarra no alto custo. Sem possibilidade de cobertura pelo Sistema Único de Saúde (SUS) ou pelos convênios, o congelamento de óvulos precisa ser feito em clínicas de reprodução assistida, que fazem os procedimentos de aspiração e conservação das amostras em tanques de nitrogênio.
Os valores variam de clínica para clínica e incluem os medicamentos que precisam ser administrados para a indução da ovulação e para a maturação dos óvulos, que são bastante caros – um procedimento bem-sucedido pode variar entre R$ 9 mil e R$ 30 mil em média, ou até mais, dependendo da clínica e dos remédios necessários.
Segundo o médico Nilo Frantz, especialista em Reprodução Humana e que dirige uma rede de clínicas que leva o seu nome, em Porto Alegre e São Paulo, a boa notícia é que o investimento feito para o congelamento dos óvulos é abatido do custo total da fertilização in vitro, que será necessária para a gestação:
– O congelamento representa cerca de 60% do custo de uma fertilização. Quando decidir descongelar os óvulos, a mulher só precisará pagar pela parte final do procedimento, que é a produção do embrião e sua implantação no útero.
Cercado de dúvidas, mas também de esperança e de uma promessa de mais liberdade para a mulher, o congelamento de óvulos ainda é um desconhecido para muitas de nós. Nesta reportagem, Donna ouviu especialistas e mulheres que optaram pelo congelamento social para preservar sua fertilidade. O objetivo é esclarecer e ajudar aquelas que desejam atrasar o seu relógio biológico para tomar a decisão de serem mães com mais tempo e segurança.
Enganando o tempo
Nenhum avanço na pesquisa médica conseguiu atrasar os ponteiros do nosso relógio biológico. Estilo de vida saudável e acompanhamento ginecológico precoce contribuem para a saúde reprodutiva da mulher, mas nada podem contra a passagem do tempo. Ainda na vida uterina, se formam nos ovários os folículos que, na idade fértil, irão amadurecer e se tornar óvulos a serem fecundados. O termo técnico para isso é reserva ovariana, que tem exatamente a idade da mulher e envelhece com ela. Depois dos 35 anos, essa reserva cai drasticamente.
Estudos demonstram que as mulheres nascem com um número que varia entre cinco e seis milhões de óvulos – estoque que não se renova. Para se ter uma ideia, ao menstruar pela primeira vez, uma menina já tem apenas entre 300 e 400 mil óvulos. Aos 40 anos, são menos de 10 mil. E, aos 45, o estoque não chega a mil.
Óvulos jovens também são mais saudáveis e a fertilização ocorre com mais facilidade. De acordo com a médica ginecologista Mariangela Badalotti, diretora da Clínica Fertilitat, de Porto Alegre, a maior parte dos riscos de má formação fetal também está ligada à idade dos óvulos.
– Normalmente, as mulheres chegam na clínica para congelar com mais de 35 anos. O ideal, porém, seria que congelassem antes dos 35, para preservar a qualidade do óvulo. Pacientes com 38, 40 anos relatam que não sabiam que era possível congelar. A gestação pode ser adiada, mas é preciso garantir o óvulo saudável – ressalta.
Se pensarmos que depois dos 40 anos a mulher tem somente 10% de chance de engravidar naturalmente, essa opção garante uma escolha mais tranquila, sem a pressão do tempo. O óvulo pode esperar .
JOÃO SABINO DA CUNHA FILHO
médico especialista em Reprodução Humana
Congelados em quantidade suficiente, os óvulos não têm prazo de validade, ou seja, podem ficar armazenados por tempo indeterminado. Os bebês nascidos dessa técnica são saudáveis, sem importar se o óvulo permaneceu mais ou menos tempo congelado. A recomendação dos especialistas, no entanto, é que a mulher engravide até 50 anos, mais ou menos.
Diretor da clínica Insemine, de Porto Alegre, o médico especialista em Reprodução Humana João Sabino da Cunha Filho destaca que cada paciente é única, mas sempre recomenda a gestação até os 50 anos, repetindo a orientação do Conselho Federal de Medicina. Isso minimiza, segundo ele, eventuais problemas de saúde que possam decorrer da condição física da mulher.
– Mesmo havendo essa recomendação, a possibilidade de engravidar próximo aos 50 anos já é um avanço gigantesco. Se pensarmos que depois dos 40 anos a mulher tem somente 10% de chance de engravidar naturalmente, essa opção garante uma escolha mais tranquila, sem a pressão do tempo. O óvulo pode esperar – afirma.
Controle e fiscalização garantem segurança
Como é possível congelar um óvulo e, ainda assim, preservar suas características genéticas e sua capacidade de gerar um embrião? Depois de tanto tempo congelado, como saber de quem é aquele óvulo? E se ocorrerem trocas?
Essas e outras dúvidas assombram quem começa a considerar o congelamento uma opção viável para preservar sua fertilidade até o momento em que quiserem engravidar. Os especialistas são unânimes em tranquilizar as pacientes e garantir a segurança e a eficiência da técnica. Congelados por vitrificação, os óvulos sofrem um processo de criopreservação ultra-rápido, o que mantém intactas as suas características. Em tanques com nitrogênio líquido, ficam armazenados a uma temperatura de -196ºC, mergulhados em alguns tipos de “meio”, que são substâncias para desidratar o óvulo e protegê-lo da baixa temperatura. A partir do congelamento, o metabolismo fica zerado. Para descongelar, o óvulo é mergulhado em nova solução, para reidratá-lo.
A embriologista Letícia Arruda, que atua no laboratório da clínica ProSer, explica que os óvulos congelados apresentam uma taxa de sobrevivência de 85% a 90% – quanto mais jovens e saudáveis, maior a taxa de sobrevivência. Ela também garante que o processo é seguro e confiável, com todas as etapas fiscalizadas por órgãos como a Anvisa.
– Depois de concluído o processo de preparação para o congelamento, as hastes que guardam os óvulos são identificadas com a data do procedimento, o código e o nome da paciente, dados que também são registrados no sistema da clínica. Todos os procedimentos com as amostras sofrem o que chamamos de double check, ou seja, um profissional executa a técnica enquanto outro apenas confere todos os dados e códigos. E tudo isso é auditado regularmente pelos órgãos de fiscalização. Erros são praticamente impossíveis – assegura Letícia.
Decisão sem medo
A médica anestesista Maria de Fátima Bravo nunca foi lá muito maternal, mas estava no lugar certo e na hora certa. Faz parte do corpo de profissionais da Clínica Nilo Frantz, em Porto Alegre, e há quase 10 anos conheceu a técnica do congelamento de óvulos e seus benefícios. Recém saída de um casamento e na idade ideal para fazer o procedimento, decidiu congelar óvulos há nove anos. Hoje, aos 45, começa a pensar na possibilidade de descongelá-los para uma possível produção independente.
A decisão, porém, ainda não está 100% tomada. Ela acredita que 2020 poderá ser o ano de ser mãe, mas ainda não bateu o martelo definitivamente. O estilo de vida independente e o gosto por viagens e pela individualidade, que divide apenas com as duas gatas que vivem em seu apartamento, ainda fazem pairar questões sobre a cabeça e o coração de Fátima.
Desde o congelamento, porém, as dúvidas vêm acompanhadas de segurança e serenidade, já que a passagem do tempo e o fantasma da infertilidade são problemas remotos há quase uma década.
– Mais mulheres precisam conhecer o congelamento, porque ele nos liberta das pressões. Tendo a fertilidade preservada, a gente pode até decidir com mais segurança se quer mesmo ser mãe ou não. Não somos obrigadas a decidir com o relógio biológico tocando – ressalta.
Sonho garantido
Ser mãe sempre esteve nos planos da professora universitária Mirela Jeffman, de 33 anos. Nunca duvidou de sua vocação e do seu desejo de ter filhos. O tempo e as circunstâncias, no entanto, a obrigaram a lançar mão de um planejamento para assegurar a realização do seu sonho no futuro.
Aos 26 anos, terminou um relacionamento longo. Sem parceiro, parecia que a maternidade ficava cada vez mais distante. Até que, aos 30 anos, começou a se informar sobre a possibilidade de congelamento de óvulos. Era uma espécie de seguro, que poderia ser acionado no futuro.
Há alguns meses, Mirela finalmente concluiu sua apólice de felicidade. Aos 33 anos, encarou o processo de indução de ovulação e congelou oito óvulos saudáveis e maduros, que podem – ou não – ser usados por ela no futuro. Sem a pressão do relógio biológico assombrando o seu cotidiano, Mirela se sente mais livre para viver o relacionamento que mantém há um ano e também para apostar em seus projetos profissionais.
– Apesar de saber o que quero, ainda não estou preparada para ser mãe. Tem coisas que quero viver antes. Com o congelamento, tenho muito mais tranquilidade para fazer tudo sem pressa e sem medo de esperar demais e perder a fertilidade. Sinto que agora posso planejar tudo com calma – afirma.
FICHA TÉCNICA
Modelo: Débora Coelho (Agência People)
Beleza: Taís Andrade
Agradecimentos: Hope Lingerie Iguatemi (figurino) e Mistura Urbana (acessórios como a ampulheta e o relógio)