A gaúcha radicada em Salvador, Camila de Moraes, fez história no cinema. A diretora é a segunda negra no Brasil a ter um filme exibido nas salas comerciais. A primeira foi Adélia Sampaio, com Amor Maldito (1984).
O documentário dirigido por Camila é O Caso do Homem Errado (2017), que narra os acontecimentos do assassinato de Julio Cesar, um operário negro na década de 1980, em Porto Alegre. O longa foi um dos 22 pré-selecionados pelo Ministério da Cultura para concorrer ao prêmio de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar 2019.
O trabalho é uma produção independente e feita majoritariamente por pessoas negras. Eu, como mulher negra e do Rio Grande do Sul, fico extremamente orgulhosa e me sentindo representada nesse local de espaço cultural que tem o domínio de pessoas com outra realidade.
Infelizmente, ele não foi adiante em busca do Oscar, mas foi reconhecido em festivais importantes como Gramado, Festival de Cinema de Mulheres e premiado como melhor longa no Festival Internacional de Cine Latino.
Tive a oportunidade de fazer umas perguntas para Camila de Moraes e, passada a loucura de divulgação nos festivais, transcrevo nossa conversa aqui:
Estou superfeliz com a repercussão e sucesso do documentário. A equipe é majoritariamente de mulheres negras. Foi proposital?
Todas as nossas ações com este projeto são políticas. Tentamos ter uma equipe com profissionais negros e com mulheres, pois sabemos a importância de estarmos nesses locais, de ocuparmos esses espaços e de contar a nossa história por meio de outra perspectiva, com o nosso olhar. Tudo foi pensado para a mudança de um cenário. Para você ter uma ideia, a nossa produção é independente, então a única exigência que fiz no set de gravação para as meninas é que estivéssemos com vestimentas afro-brasileiras. A moda diz muito da nossa identidade e assim foi feito, estávamos lindas e empoderadas.
É uma produção independente, mas como acontece o investimento? Tentaram algum apoio ao projeto?
A elaboração do projeto começou a surgir em 2010. A nossa proposta inicial era produzir um curta-metragem. Tentamos alguns editais com investimento público, mas não fomos aprovados em nenhum. No início de 2016, começamos uma campanha de financiamento coletivo, e também não atingimos a meta. No mesmo ano, fizemos uma parceria com uma produtora de cinema de Porto Alegre chamada Praça de Filmes, que nos deu todo suporte técnico para as gravações e finalização do filme. Com essa parceria, mais o apoio financeiro da comunidade negra, pessoas e instituições e o nosso próprio investimento, conseguimos realizar o documentário. Costumamos dizer que o filme é de um coletivo que acreditou no projeto e até hoje investe de diversas formas para que possamos estar chegando nos mais diversos locais.
A partir do que a história de Julio Cesar foi escolhida para ser contada?
No Rio Grande do Sul o caso ficou muito conhecido, porque se descobriu como aconteceu o crime, as pessoas envolvidas foram levadas a julgamento e se tornou uma bandeira de luta para o movimento negro e de direitos humanos. Infelizmente, estamos em 2018 e os dados de execução de pessoas negras no Brasil só aumenta. A cada 23 minutos tem um jovem negro sendo morto. 77% dos jovens que morrem no país são negros. Na verdade, o nosso filme é um grito de basta! Queremos que a sociedade escute. Não aguentamos mais conviver com o racismo que nos mata todos os dias e não adianta quererem tirar as nossas vidas com essas execuções absurdas, como o caso da vereadora carioca Marielle Franco. Mais e mais pessoas estarão aqui para seguir na luta e lutar pelos nossos direitos, o direito básico de estarmos vivos e viver com dignidade. Que esse direito de ir e vir não seja mais impedido por conta da cor da nossa pele, por conta da minha pigmentação escura. Vidas negras importam e lutaremos por isso até o fim.
Os casos de injustiça da justiça aparecem todos os dias. Conheceu famílias com histórias semelhantes ao do Júlio César? O que você tem a dizer sobre isso?
O filme toca de forma diferente nas pessoas. Às vezes muita dúvidas ficam em nossos pensamentos. Será que vale a pena reviver todas as situações de perversidade? Será que estamos de fato fazendo alguma mudança? Estamos dialogando sobre o extermínio da população negra e isso é muito importante. Já fizemos debates com representantes da Justiça, comunicadores, membros de movimentos de direitos humanos e movimento negro. Estamos ocupando o meio do audiovisual para falar de uma temática que nos custa a vida e temos encontrado pelo caminho diversos aliados na causa. Mas o que me deixa na dúvida é saber se de fato a gente vai conseguir alguma mudança, se iremos terminar com o racismo que existe, se iremos parar de morrer. O público tem nos dado uma esperança ao ir ao cinema, ao solicitar o filme, nos debates, nos e-mails e mensagens que recebemos toda hora e eu espero estar viva para um dia ver essa mudança. Mas viver num país racista causa um sentimento de revolta e profunda tristeza, porque só o que queremos é viver com dignidade e existe um sistema tão cruel que se acha que você não se encaixa nele, tem a permissão de tirar a sua vida. Soube ontem que meu vizinho morreu, e anteontem o aluno da escola da esquina da minha casa morreu, no final de semana o ator que estava indo para o teatro trabalhar foi baleado ao ser confundido com assaltante, na semana passada uma criança da comunidade periférica foi encontra morta caída no chão, e meses atrás houve uma chacina no bairro Cabula em Salvador e mataram 12 jovens. Todos os dias estamos morrendo e o sentimento é de pura revolta.
Não é comum mesmo filmes dirigidos por mulheres negras e gaúchas. Como você se sente como mulher, negra, jovem em um longa de tanta importância?
Nós precisamos escrever a nossa história e não deixar que queimem ou apaguem as nossas memórias. No Rio Grande do Sul, 16% da população é negra e eu dei a sorte de nascer nesse estado, em uma família de artistas e militantes negros que me ensinaram a ter orgulho da minha cor, das minhas raízes e do local onde nasci. Em qualquer lugar que eu vou, sempre me apresento como gaúcha, pois essa terra me deu coisas muito boas, outras nem tanto, mas ela me ensinou a ser resistente e a lutar por meus direitos. Atualmente vivo em Salvador, há oito anos na verdade, vim pra cá por uma questão de identidade racial e também para fugir do frio. Eu passo muito mal com o inverno. Mas agora, vivendo no estado mais negro fora de África, percebi que o racismo é tão cruel quanto para quem vive no Rio Grande do Sul, pois não estamos nos espaços de poderes. É hora de mudar esse quadro no país inteiro. Eu fico muito feliz em estar nessa posição de mulher, negra, gaúcha, fazendo cinema e recontando outra história, contando a nossa história com o nosso olhar. E nós continuamos abrindo o caminho para que mais companheiras e companheiros negros possam estar ao nosso lado ou muito além, pois é chegada a hora de assinarmos o nosso nome com sobrenome na história do Rio Grande do Sul, na história do cinema brasileiro, na história do Brasil.
Você participou de diversos circuitos de filmes, como foi a receptividade?
A gente precisa analisar um contexto geral. A nossa ideia com o filme era percorrer o circuito de grandes festivais nacionais e internacionais. Neste ano participamos de dois, o 45º Festival de Cinema de Gramado e o 9º Festival Internacional de Cine Latino, Uruguayo y Brasileiro, e depois não fomos mais selecionados para nenhum. Gastamos mais de R$ 2 mil somente em inscrições e como só recebíamos recusa ao nosso filme, fomos por outro caminho, que foi começar a fazer circuito comercial. A partir dessa ação, veio a notícia que eu era a segunda mulher negra a dirigir um longa-metragem e conseguir entrar em circuito comercial. Por isso, começamos a receber convites para participar de festivais e mostras de Cinemas, e hoje contamos com mais de 15 festivais no currículo. Como dito antes, são questões políticas que dizem as regras do jogo e nós estamos aprendendo como se joga. Se por um lado nos convidam para participar desses eventos, pois é uma produção de mulheres negras e com temática racial, nós aceitamos, pois acreditamos ser de extrema importância ocupar esses espaços e mostrar que nós, realizadores negros, existimos e produzimos materiais de excelência. No entanto, os participantes têm se mostrado abertos ao diálogo e dispostos a estarem ao lado de quem está querendo mudanças no cenário do audiovisual brasileiro, pois quem sai ganhando é todo mundo. Só que precisamos entender que se não tivermos pessoas comprometidas, mulheres e profissionais negros, na comissão de seleção de filmes e nos júris que dão prêmios, nós não chegaremos. Dá pra perceber o quão é perverso esse jogo? O que tenho percebido ao olhar para o lado é a falta de espelho. Vejo poucas pessoas negras circulando nesses espaços. Primeiro, que fazer cinema no Brasil é muito caro, então nós, realizadores negros, levamos anos para tirar uma ideia do papel, e depois não conseguimos local para exibição do nosso filme, ou ele não é selecionado nos festivais ou se é, ele não circula por vários, ele vai em um ou outro. Precisamos ter em mente que o ser humano é um sujeito aberto para receber conteúdos bons e de qualidade, mas ele precisa ter a oportunidade de acessar.
Por fim, como você recebeu a notícia de que seu documentário estava entre os filmes brasileiros pré-selecionados pela Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura para concorrer ao Oscar? E o que isso significou pra ti e para a produção?
Eu acho que nós brasileiros ainda não temos noção do grande passo que foi dado para a história do cinema brasileiro. É a primeira vez que uma produção de pessoas negras chega nesse patamar em mais de 100 anos de história do Brasil. É a primeira vez que uma mulher negra, gaúcha, chega nessa lista com uma produção independente que trata de um tema racial e isto é muita coisa! A ficha tem caído aos poucos. Chegamos num patamar que lá em 2010 nem imaginávamos que poderíamos chegar, trabalhamos muito para isto. Levamos uma semana para poder finalizar o processo de inscrição e quando recebemos a notícia que estávamos entre os 22 filmes possíveis para representar o Brasil na categoria, foi uma emoção tão grande. Eu gritei muito, chorava, fiquei por segundos com falta de ar, porque aí tu olha pra trás e vê que a tua trajetória é muito diferente do povo que está ali ao lado, digo no audiovisual brasileiro dominado por pessoas brancas e elitistas. Percebe que também temos talento, que produzimos material com qualidade e com a primeira produção de um longa-metragem independente conseguimos chegar até aqui? Imagina se estivéssemos no jogo jogando com as mesmas condições aonde não estaríamos? Se no nosso primeiro chute foi na trave, se tivermos a oportunidade de descer pro play e brincar nos mesmos brinquedos vamos fazer o gol mais lindo, de bicicleta ainda. Então, o que a gente precisa é de oportunidades e condições justas de trabalho para podermos chegar lá. Com essa etapa conquistada, mostramos para os nossos companheiros de cor que sim, é possível chegar ao Oscar e onde mais quisermos. É possível e sabemos que para nós o caminho ainda vai ser mais difícil, mas não impossível. E espero que ano após anos tenha um de nós ali disputando essa vaga.
Veja o trailer de O Caso do Home Errado:
Duda Buchmann é blogueira que gosta de falar do mundo feminino, principalmente da mulher negra, e de inspirações que elevem a autoestima delas. Escreve semanalmente em revistadonna.com.