Foto: Andrea Graiz Foto: Andrea Graiz Foto: Andrea Graiz Foto: Andrea Graiz
Giane faz de seu trabalho um tributo às suas origens e à sua raça. Doris, 80 anos, lança voo solo para valorizar a moda gaúcha. Madgéli conscientiza homens que agrediram suas mulheres. São elas as vencedoras da 3ª edição do Prêmio Donna Mulheres que Inspiram, escolhidas pela equipe Donna entre 10 indicadas por jornalistas e profissionais de diferentes áreas. Conheça suas histórias e seu exemplo.
O Rio Grande do Sul havia passado a quarta-feira às voltas com uma daquelas polêmicas que só no Rio Grande do Sul. O Movimento Tradicionalista Gaúcho enviara um ofício aos seus coordenadores alertando sobre a proliferação das bombachas skinny. De inspiração castelhana, elas são mais estreitas e, de acordo com o MTG, “totalmente fora do padrão”.
O uso do modelo deveria, portanto, ser fiscalizado nos eventos oficiais. No final de tarde, a polêmica gaudéria subiu a Miguel Tostes e adentrou o segundo andar da casa que abriga a marca Rui. Àquela altura, já meio abafada pelas gargalhadas:
– Para mim, uma das partes mais bonitas do homem é a bunda. Homem sempre tem a bunda bonita. Por exemplo: eu acho bermuda de praia em vez de sunga um horror…
Doris Spohr se interrompe e questiona o repórter sobre suas preferências em trajes de banho, antes de prosseguir:
– Observa como a bombacha tem o corte bonito. A bunda está sempre bonita na bombacha. O segredo do corte é justamente o gancho, e o modelo skinny tira todo o charme. Eu posso falar sobre isso, por exemplo?
Quando as risadas cessam, a profissional da empresa de produção de conteúdo em redes sociais afirma que sim, lógico que sim. É justamente para esse tipo de comentário que aquele projeto está saindo da prancheta. A reunião é para desenvolver com Doris, aos 80 anos recém-completos, um canal de vídeos que explore sua faceta naturalmente youtuber. Funcionária e amiga da família Spohr de longa data, Rejane Martins explica:
– Diversos programas podem ser gravados de uma só vez. Mas, se acontecer algo que valha a pena furar a fila, a gente para tudo e grava. Por exemplo: morreu o Givenchy (estilista francês, morto quarto dias antes), a Doris pode fazer um comentário. Ou então esse episódio da bombacha. Assunto é o que não falta… Viu, Rui?
De sua escrivaninha, o estilista Rui Spohr observa de canto. Às vezes, faz uma colocação: “Será que vai ter assunto?”, “Televisão dá trabalho, e tem muita coisa para fazer aqui dentro”. E em todas elas é rebatido de pronto. A verdade é que assiste, com um misto de ciúme e orgulho, a um movimento que já vem acontecendo há uns bons anos. Mais ainda desde um jantar em 2012, quando Doris Spohr se levantou para ir ao banheiro, e, na volta, contaram que ela fora eleita presidente do Sindicato da Indústria do Vestuário do RS (Sivergs).
– Na época dos desfiles, era a Doris do Rui pra lá, a Doris do Rui para cá. Agora, ele está experimentando um pouco ser o Rui da Doris – brinca a esposa do estilista e principal nome na administração da marca.
Em sua biografia, Memórias Alinhadas (Editora Artes e Ofícios, 1997), escrita em parceria com Beatriz Viégas-Farias, a descrição de Rui para a mulher cai como um de seus vestidos: “Enxerguei nela aquilo que tem dentro de si e que vai além da aparência, além de ela ser para mim uma figura extremamente agradável. É uma mulher elegante, chique e com gestos bonitos. Isso nela é inato: o extremo capricho com as coisas, o ser e estar sempre bem arrumada. (...) Meu sogro era um homem bonito, simples, mas de hábitos finos, muito educado, honestíssimo consigo mesmo, fala mansa, a finesse em pessoa – e Doris é assim, em tudo puxou o pai”.
Doris se descreve de forma mais descontraída. Enquanto Rui destaca seu gosto pela música clássica, por exemplo, ela recorda que dançou o primeiro disco de rock que chegou a Porto Alegre, ainda adolescente, no Cultura Inglesa. Se o marido menciona a finesse, Doris exalta também um benefício da idade: poder conversar tocando as pessoas – o que ela faz, claro, te segurando pelo braço e olhando nos olhos.
Segundo Doris, todos imaginam que Rui se casou com uma de suas manequins. Diverte-se ao revelar que era sua secretária. Antes dela, Rui havia tido apenas uma namorada, de quem se afastou por três anos quando torrou sua parte de uma herança para estudar moda na França, na década de 1950. “Como ela (a namorada) só falava em joias e apartamentos, um dia assustei-me e resolvi então contar que estava cheio de dívidas, precisando de alguém que, em vez de pensar em gastar e gastar, lutasse ao meu lado e quisesse crescer junto comigo. Ela preferiu seguir sua trajetória”, escreve Rui.
O namoro com Doris começou por carta no final de 1958, durante uma viagem ao Rio de Janeiro em que o estilista adoeceu – vítima, segundo ele, de um mau-olhado colocado em um terno de alpaca inglesa – e permaneceu por meses sob cuidados de amigos. Ali começou a trocar cartas com a jovem secretária de 20 anos (ele tinha oito a mais). Primeiro, sobre a administração do ateliê na sua ausência, mas logo, conforme a escrita ajudava a vencer a timidez, sobre o quanto sentiam falta um do outro e o que, afinal de contas, aquilo significava. Se casaram um ano depois do reencontro, em 4 de fevereiro de 1960.
Se por um lado estavam unidos mais na alegria do que na tristeza, estavam mais para a pobreza do que para a riqueza. Ambos recordam que se casaram no verão sem dinheiro para comprar cobertas para o inverno. O terreno onde construíram um sítio em Belém Novo, três anos depois, foi comprado graças ao dinheiro economizado para a cesariana da única filha, Maria Paula, que acabou nascendo de parto normal. E assim, quase ponto a ponto, foram evoluindo até chegar a uma empresa e uma assinatura com mais de 60 anos de história na moda.
Nela, Doris se revelou não apenas gestora, mas também um técnica em moda. Foi ela, por exemplo, quem se aproveitou das apostilas trazidas por Rui da França para desenvolver o método de corte do ateliê e, a partir dele, realizar o atendimento de alta-costura ao público usando a técnica do moulage (em que as peças são desenvolvidas já sobre um manequim, em três dimensões), que ajudou a badalar o nome de Rui a partir da década de 1960.
Após seis décadas de trabalho, o casal irá fechar em breve a loja no Rio Branco, bem como os atendimentos ao público. Por isso, o movimento é intenso, tanto na loja – “todas bem loucas pelo último Rui”, brinca Doris – quanto nos pedidos de peças sob medida. Em um dos últimos, Rui percebeu que vestira cinco gerações de mulheres de uma mesma família. É mesmo chegada a hora de descansar.
Rui faz mistério sobre os planos para depois da (quase) aposentadoria. Doris, não. Além de viabilizar o Instituto Rui Spohr, para preservar o legado do estilista, desde o ano passado ela está na comissão de frente do RS Moda, projeto com ambições nada modestas. O objetivo é integrar varejo, indústria, universidades e todos em volta do setor têxtil para recolocar o RS em seu posto de líder nacional no segmento.
– As pessoas não se conversam, sabe? E é um problema particularmente grave no nosso Estado. Precisamos dialogar para saber que um cara de um município aqui pode ajudar o de lá a crescer – relata Doris, hoje vice-presidente do Sivergs.
Em julho de 2017, o RS Moda reuniu dezenas de expositores em um evento de dois dias no BarraShoppingSul. Adiantada em razão da Copa do Mundo, a edição deste ano será nesta segunda e terça, na Fiergs. Doris estará elegantemente a postos. Por trás do sorriso, alguns segredinhos: se estiver repetindo roupa, ninguém saberá, pois ela as etiqueta com as datas e os eventos para não usá-las com o mesmo público. Nas fotos, para sair bem, ela direciona a pontinha do pé da frente para a câmera. Para conquistar simpatia, o segredo é tocar o interlocutor de leve, sorrir e falar nos olhos. Quer mais truques? Bem, desde quarta-feira está no ar o canal de vídeos batizado de Simplesmente Doris. Assim mesmo, sem Rui nem Spohr.
Leia mais: