Fiz tudo o que tinha pra fazer hoje, menos o que tinha que fazer.
Tinha que ir ao banco, ligar pro contador, tinha que desmontar uma cama, tinha que ter tirado o lixo com a cama que, a essa altura, também seria lixo. Tinha que ter dobrado uma pilha de roupa do tamanho de duas pessoas adultas e ter ido no INSS ver negócio de PIS não sei, não sei. Tinha que ter ido ao Correio enviar livros e um relatório oficial mala pra caramba e ter resolvido um pau que está dando no meu celular que impede que eu faça transações bancárias. Tinha que ter ido atrás de uns negócios de cartório, mas aí resolvi mandar um e-mail pro cartório que fica na frente da minha casa. Na frente. Provavelmente me responderão em 2021, e não será mais necessário pois amanhã eu passo lá e descubro o que queria saber.
Fora aquelas coisas, arrumar a estante, aspirar a sala, dar um jeito naquele banheirinho, e o meu escritório, ó céus, está impraticável, tanto que escrevo neste momento diretamente de minha cama – de novo – porque não tem nem onde sentar. O caos, o caos.
Mas o caos tem o melhor dos motivos: eu finalmente vou conseguir realizar um dos meus sonhos, que é um espaço próprio para dar aulas de oficina de escrita criativa. Já há alguns anos eu dou aulas para mulheres (calma, não gritem, algumas turmas são mistas).
E por que só para mulheres?
Uma vez eu estava em um debate e levantei essa questão das prateleiras serem muito mais recheadas de homens do que de mulheres. Evidente que há uma questão histórica, mas o que mais me irrita é a prateleira “literatura feminina” de algumas livrarias. Há, por acaso, prateleiras de literatura masculina? Não.
Nesse dia, descobri que as editoras recebem três vezes menos originais de livros escritos por mulheres do que por homens. É porque tem pouca mulher escrevendo? Não.
É porque as mulheres desistem antes mesmo de enviar seus livros.
Há muitas mulheres inseguras com sua escrita, com vergonha de mostrar, com medo de errar, duvidando de seu potencial; é uma questão de construção mesmo, de insegurança, de achar que o que escrevemos vale menos. A oficina serve para que as mulheres que participam criem mais segurança em relação a seus textos, em um espaço seguro em que se sintam confortáveis para compartilhar e escrever sem temer julgamentos.
E é tão lindo ver a evolução das alunas. É incrível ver a repetição. Elas sempre dizem: escrevo desde adolescente. Tenho cadernos e cadernos e nunca mostrei pra ninguém. Tenho dois livros prontos, e ninguém nunca leu pois tenho vergonha de mostrar. Escrevo outras coisas, trabalho com jornalismo, publicidade, direito, mas quero expandir minha escrita. Muitas chegam se achando menores e que o que fazem não é bom o suficiente, e isso vai mudando ao longo do curso. Com o método que criei, elas vão desenvolvendo segurança, e a primeira turma chegou a organizar uma antologia que arrancou lágrimas desses meus olhos quase sempre tão secos.
Então, é isso. 2018 começa com um sonho realizado: tenho meu espaço, tenho o embrião de uma escola, onde pretendo chamar outras mulheres para outros cursos, tenho meu lugar.
Ou seja, não fiz nada do que tinha que fazer, mas fiz tudo.
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