Marli ao lado das outras vencedoras do Prêmio Donna: Babi Souza (C) e Patrícia Palermo. (Foto: André Ávila)
Não é tarefa fácil localizar Marli Medeiros, 66 anos. O sinal de celular na Vila Pinto, zona leste de Porto Alegre, está longe de ser uma maravilha. Via telefone fixo, então, pior ainda. Marli quase nunca está sentada no escritório. Quando finalmente a entrevista é marcada, a reportagem de Donna a encontra pela primeira vez nos fundos da Escola de Educação Infantil Vovó Belinha olhando inconformada para um tanque recém-instalado.
Enquanto 120 pitocos de diferentes idades fazem a sesta pós-almoço nas salas, Marli busca explicações para a diferença de formato entre as lajotas, que, na opinião dela, dão cara de improviso à obra.
- Eu vou te contar, viu? Se a gente não acompanha tudo de perto, sai um serviço desses.
Inaugurada em 2008, a escola Vovó Belinha, conveniada à prefeitura, é a conquista mais recente do Centro de Educação Ambiental da Vila Pinto. Antes dela, vieram o Centro Cultural James Kulisz, de 2002, e o Centro de Triagem da Vila Pinto, de 1996. Este ajuda a contar melhor a história de Marli.
Natural do Alegrete, ela trocou um emprego como bancária no município por um de zeladora ao lado do marido, em um prédio no Bom Fim, em 1975. A mudança, aos 24 anos e então com três filhos (hoje são cinco), era parte de um plano mais ambicioso para trazer toda a família da região da Campanha para a Capital. Projeto que teve início, de fato, quando soube de um programa de habitação popular na Vila Pinto, na década de 1980.
- Enquanto construía, as mulheres me diziam: "Isso aqui é uma desgraceira, não tem água, não tem rua, só tem bandido". Eu só via que tinha chegado do Centro à vila em 25 minutos. Uma oportunidade espetacular. Se não me desse conta dela, outra pessoa se daria em seguida - relata.
Para Marli, era como se as pessoas daquela comunidade encarassem o lugar como um exílio social, uma punição por terem dado errado na vida. A única vocação da região, à época, era ser rota de fuga de assaltos, dada esta proximidade com as regiões mais badaladas da cidade.
- Eu dizia: "Bem, se vocês merecem morar mal, os filhos de vocês não merecem" - conta Marli, que se tornaria quase instintivamente uma líder comunitária.
Uma de suas primeiras iniciativas na comunidade foi fundar, no início da década de 1990, o Clube das Mulheres, que logo teve de mudar de nome para evitar confusões com a casa de striptease da novela De Corpo e Alma, sucesso da Globo entre 1992 e 1993. Por anos, Marli comandava reuniões semanais entre mulheres que eram fiscalizadas de perto por traficantes. A estratégia para afastá-los era curiosa:
- A gente falava só de menstruação, de "placenta colada" e coisas do tipo até que um homem convidava o outro para fumar um cigarro e não voltavam mais. Aí, sim, a gente descobria quem havia expulsado quem de casa, quem havia sido espancada pelo marido, o filho de quem estava se envolvendo com bandido…
Entre a década de 1980 e 1990, Marli desenvolveu um faro até hoje aguçado para oportunidades de investimentos na região, seja do poder público, da iniciativa privada ou mesmo de parcerias com entidades internacionais. Duas ferramentas ajudaram a impulsionar esse talento. Em primeiro lugar, o Orçamento Participativo. Marli foi umas das primeiras líderes comunitárias a circular com desenvoltura pelo sistema de participação popular na destinação das verbas municipais. Comparecia às reuniões com um pequeno exército de mulheres para votar pelas obras. A articulação era tanta que por vezes negociava com líderes de outras regiões a não participação em determinada rodada de recursos, para dar chance a outras comunidades.
A segunda ferramenta foi um curso de oito meses ministrado, em 1993, pela ONG Themis, que promove assessoria jurídica e estudos de gênero. Marli se tornou então uma "promotora legal popular", cargo criado por diferentes ONGs da América Latina para multiplicar em comunidades carentes o conhecimento de seus direitos. O título também serviu como espantalho para a criminalidade que rondava (e ainda ronda) a vizinhança.
- Mandei fazer uma faixa e coloquei na minha própria casa: "Parabéns, Marli: promotora legal popular." Sabendo que bandido se pela de medo mais da palavra "promotor" do que "juiz".
Desde então, Marli cultiva o hábito de circular com a Constituição na bolsa, pronta para alçá-la em frente a quem viola algum dos seus direitos. Já o fez, por exemplo, em uma reunião em que foi confundida por um funcionário público com a copeira do lugar.
A ideia do centro de triagem surgiu em 1995, quando a promotora embarcou em um ônibus com 30 grandes pensadoras do Brasil para um encontro na Argentina. No caminho de volta, o grupo resolveu, digamos, pregar uma peça social no então prefeito Tarso Genro. Pronto para receber as mulheres apenas para uma cerimônia de homenagens e tapinhas nas costas, o prefeito recebeu no colo o projeto de uma usina de reciclagem, cuja implementação seria fiscalizada de perto por uma obstinada Marli até o final daquele ano. Não teve alternativas senão assinar embaixo.
- No dia seguinte, o Tarso me ligou: "Marli, vai levar lixo pra dentro de uma comunidade que já se enxerga como lixo?".
O centro cultural, bem como uma bela quadra poliesportiva coberta ao lado, foram conquistados com o mesmo misto de obstinação, senso de oportunidade e cara de pau. A estratégia é sempre semelhante: dar início à obra e depois pegar no pé dos financiadores exigindo tudo do bom e do melhor até o final. Na primeira obra, por exemplo, Marli convenceu um grupo de empresários locais de que precisava de um "McPinto", para que as crianças pudessem fazer lanches e se divertir sem sair da comunidade. Hoje, o prédio de dois andares está equipado com uma pequena sala de cinema, biblioteca e lanchonete capaz de servir 200 refeições ao dia.
Já o Centro de Triagem da Vila Pinto processa hoje 130 toneladas de lixo para reciclagem ao mês e remunera por volta de 45 associadas. Já foram mais de 200, mas lixo hoje é um artigo de luxo em Porto Alegre. Além de outros galpões de reciclagem parceiros da prefeitura, existe ainda a concorrência de coletores piratas, que levam o lixo para revender na Região Metropolitana. Ainda assim, Marli se orgulha de ter cumprido as metas ambientais e sociais do projeto para 20 anos em menos de 10. Com um diferencial importantíssimo.
- É um trabalho sempre com foco na mulher. Homem aqui tem duas funções: carregar peso e obedecer - brinca.
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