(Maiquel Borges/ O Bendito Fruto/Especial) (Foto; Maiquel Borges)
Caue Fonseca, especial
A história de uma mulher é a história de muitas. Os percalços superados por uma brasileira podem ser os mesmos contra os quais tantas outras lutam no dia a dia. Nestas páginas, Donna estreia a série Donna do Meu (que pode se referir ao meu corpo, meu desejo, meu dinheiro e por aí vai).
Donna da minha belezaNeste Dia Internacional da Mulher, estreia no nosso site a série #DonnadoMeu, com emocionantes depoimentos sobre grandes questões femininas. A primeira história é da Giovana Grando, que após 26 anos sofrendo para se enquadrar em um padrão de estética, declarou ser #DonnadaMinhaBelezahttp://zhora.co/donnadaminhabeleza
Posted by Revista Donna on Tuesday, March 8, 2016
Uma vez ao mês, as leitoras conhecerão o rosto e as palavras de quem luta para superar uma grande questão da mulher contemporânea. A primeira história é da designer gráfica Giovana Grando, 26 anos. Desde a infância, seja na sala de aula ou no salão de festas, ela sofre com a imposição de um padrão de beleza que rejeita mulheres do seu peso. Ainda lutando uma batalha para evitar que a balança se torne o centro da sua vida, Giovana conseguiu evoluir de uma pessoa que não saía de casa com braços e pés à mostra para uma mulher capaz de posar e divulgar um ensaio com fotos sensuais. Se torna, aos poucos, dona da sua beleza.
"Uma das minhas primeiras lembranças é da churrascaria ao lado da minha casa, quando eu tinha por volta de cinco anos. As crianças subiam no muro para cantar músicas de gorda, e eu corria do quintal para dentro chorando. Curioso é que, vendo fotos da infância, eu não era uma criança obesa. Era pouca coisa acima do peso delas próprias. No entanto, aquele xingamento de “gorda, gorda, gorda” foi crescendo na minha cabeça. Na escola, esse sentimento ruim piorou. Lamentavelmente, com a ajuda e muitos professores.
Talvez tenha faltado um pouco de sensibilidade aos meus pais, à época, para perceber que não é normal uma criança de seis anos voltar todo dia com um bilhete na agenda. Tampouco é normal nunca querer ir à escola. Naquele tempo, crianças com dificuldade de se integrar com as outras ficavam isoladas. Na primeira série, mesmo estudando em um colégio particular na zona sul de Porto Alegre, cheio de recursos, passei mais tempo na salinha do SOE, brincando com cubos, do que em sala de aula.
Essa professora da primeira série, hoje, me adora. Nem desconfia do mal que me fez. No início da vida escolar, é fundamental um pedagogo no acompanhamento dos alunos, sejam eles gordos, magros, altos, baixos... Nunca, aos longo dos 13 anos da pré-escola ao Ensino Médio, um professor perguntou se eu estava com algum problema. Alguns fizeram pior. Fui apelidada por um deles de “nona italiana”. Lembro de outra, de inglês, ensinando a turma a fazer perguntas. Ela questionou a menina ao meu lado:
– Is Giovana fat? (Giovana é gorda?)
A colega olhou em minha direção, meio constrangida, e respondeu:
– No, she’s not. (Não, não é)
A professora corrigiu:
– Hmmm. Do you think so? I think she is. (Você não acha? Eu acho)
Nunca entendi o porquê de as pessoas fazerem isso. De uma criança de oito anos se julgar livre para xingar uma guria do Ensino Médio, desde que ela seja gorda. De um garçom perguntar no restaurante, enquanto você está com uma amiga à mesa, se não aceita uma batata frita. As pessoas parecem ter menos vergonha de um preconceito contra gordos. Talvez achem que ele é assim porque é desleixado, e, portanto, merece ser maltratado.
Cabe esclarecer que nem toda pessoa está acima do peso porque quer. No meu caso, por exemplo, além da carga genética, o peso oscila com muita facilidade conforme minha ansiedade com os outros campos da minha vida. Aos 15 anos, atingi o mesmo peso de hoje. Já oscilei de mais de 90 quilos, em 2005, até um comportamento anoréxico, em 2009, sem querer comer e pensando em peso a todo instante. Nas curtas fases em que fiquei com um peso considerado ideal para a minha altura, pouco consegui aproveitar, porque desenvolvi síndrome do espelho, e só pensava em emagrecer mais e mais.
Demorei muito para sequer entender que eu sou diferente de outras mulheres. Que elas podem ter a mesma altura que eu, mas eu ter dificuldade para emagrecer e elas não. Que uma pessoa pode ser sedentária e magra, enquanto eu me puxo na academia e nada. A matemática de um organismo é diferente do outro.
Mas ainda que determinada pessoa esteja gorda porque quer, porque se alimenta mal, não faz exercício algum e é feliz assim, que direito tem você de emitir uma opinião desagradável sem constrangimento? Por que as pessoas não cuidam das suas próprias vidas?
Por que eu estar fora de um padrão de beleza é uma questão tão forte para você? Por que a felicidade de alguém que você julgaria ter motivos para estar infeliz lhe incomoda tanto?
As pessoas costumam ter uma memória fotográfica para episódios que as fizeram se sentir mal, sobretudo na infância ou na adolescência. Pois agora imagine como é viver isso em toda santa festa que você frequentou na vida. Estar sempre pronta para ouvir uma piadinha. Ser, por vezes, a única pessoa da roda a não receber um cumprimento. Parar de dançar porque tem alguém rindo. Estar sempre tensa se um guri chegou em você porque está a fim ou se está pela galhofa. Até hoje, quando um grupo de homens vem em minha direção na rua, fico meio tensa.
O engraçado disso tudo é que pessoas acima do peso não são uma minoria. Talvez você não repare, mas eu sim. Sei, por exemplo, que associar obesidade a fracasso é uma mentira, pois reparo em uma reportagem na forma física de uma empresária, de uma política, de uma cientista. Noto quantas pessoas acima do peso estão em um restaurante, em um ônibus, e tento imaginar onde elas compram roupas quando precisam ir a um casamento, por exemplo. Porque não há qualquer esforço das lojas para incluir pessoas acima do peso.
– Não trabalhamos com roupas para o teu tamanho – ouvi aos 15 anos, ao procurar um vestido de festa junto com amigas, e algumas outras vezes, de formas menos ou mais delicadas.
Ou, mais cruel ainda, os tamanhos são “encolhidos”. Trabalho com design, então já tive algum contato com profissionais da indústria têxtil. Eles confirmam que um tamanho 46, muitas vezes, é desenhada nos moldes de um 42. Tudo bem, para as marcas, uma pessoa como eu se sentir ainda pior não entrando em medidas que eu sei serem as minhas. Por algum motivo, as grifes brasileiras não querem pessoas gordas vestindo as suas roupas. Qual outro segmento da sociedade é deliberadamente excluído sem qualquer constrangimento?
Quando me pergunto por onde isso poderia começar a mudar, penso que a representatividade na mídia tem um papel importante. Se, como na vida real, os personagens de uma novela tivessem diferentes pesos, já seria um avanço. Especialmente mulheres. Não há uma gorda com problemas financeiros, de relacionamento, envolvida em um triângulo amoroso... Se um personagem chega à dentista, ela é magra. Se é socorrido de um tiroteio, a enfermeira é magra. Quando há um gordo na tela, o problema dele é ser gordo. E aposto que será um personagem secundário engraçadão. Porque é ok rir do gordo.
Esse espancamento diário na autoestima conduz pessoas acima do peso a relacionamentos abusivos. Já tive sorte e azar em relação a isso. Quando era adolescente, passei cinco anos me relacionando com uma pessoa que me ajudou a sair da casca. Situações boas e ruins aconteceram entre nós, mas se hoje eu me tornei uma pessoa extrovertida, cercada de amigos e de bem com a vida, devo muito a ele.
No meu último relacionamento, que durou três anos e se encerrou há oito meses, aprendi que podemos transformar os problemas de um em um problema de ambos, mas nunca a ponto de deixar de viver a própria vida em razão do outro. Tentando auxiliar em questões pessoais dele e terminando a faculdade ao mesmo tempo, engordei 15 quilos em dois anos.
Se os dois primeiros anos foram ótimos, no último ele começou a se sentir incomodado com meu peso. Ouvi comentários desnecessários, e só depois me dei conta de que não precisava passar por aquilo. Certa vez, conversávamos sobre as férias de verão e comentei:
– Lá na praia eu caminhava bastante e estava comendo superpouco.
Ele, sem pensar:
– Não sei por que, se continuou gorda.
Lembrei de nós peregrinando de farmácia em farmácia de Tramandaí por quatro horas para eu me pesar. Eu tentando provar que estava três quilos mais magra – conforme minha nutricionista confirmaria na volta – e ele duvidando.
Recentemente, eu o confrontei. Perguntei se ele havia terminado comigo por causa do meu peso. Ele respondeu que talvez “a imagem que eu tinha de mim mesma” tenha influenciado. Sem comentários. Hoje estou convicta de que ficarei solteira ainda por um bom tempo, até me sentir livre da doença “peso” para ser feliz.
A ideia do ensaio sensual veio ao longo do meu relacionamento. Mostrei ao meu namorado o perfil O Bendito Fruto, no Facebook. Achei bacana o formato combinando fotos sensuais de mulheres normais, sem Photoshop, e as histórias das modelos. Ele não deu importância. Coloquei na cabeça que um dia teria coragem de fazer algo assim. Quando o namoro terminou, pensei: “vai ser logo, vai ser este ano”.
Sofri uma sequência de amigdalites, remarquei três vezes, antes de enfim tomar coragem para fazer as fotos. Quando fui escolher quais poses iriam para o site, ainda tensa, perguntei ao Maiquel Borges, o fotógrafo:
– O que as pernas da Renata (Schmorantz, namorada e parceira do Maiquel nos ensaios) estão fazendo aqui, misturadas com as minhas fotos?
– Gi, são as tuas pernas.
Ali eu tive a proporção do demônio criado na minha cabeça. Lembrei da viagem a Nova York em que eu não posava para as fotos para não estragá-las. Lembrei do verão escaldante da greve dos motoristas, em 2014, dos tantos outros em que eu peregrinava por Porto Alegre com casacos de manga e sapato fechado, pois achava meus braços e pés gordos. Lembrei do receio ridículo de entalar na catraca do ônibus.
Deixei para trás um sonho de ter 50 quilos, mas nem por isso deixei de me cuidar. Cortei o cabelo curto, fiz uma tatuagem nas costas. Faço academia e sigo frequentando a mesma nutricionista desde os 11 anos. Brinco que ela faz as vezes de psiquiatra. Almejo diminuir cerca de 10 dos meus 77 quilos, mas vaidade não é o principal motivo. Venho aprendendo a me achar bonita, e permitindo que os outros me achem. Desejo apenas atingir o peso e a circunferência de cintura que me deixe menos propensa ao diabetes, um mal frequente na minha família.
A principal mudança, a mental, já está em curso. Por meio do reiki, trabalho a minha força. Estou aprendendo a rebater, em vez de absorver o que me incomoda. Outro dia, na noite, um guri estava beijando uma menina gorda, e as pessoas ao redor riram da menina. Questionei:
– O que tem de errado com ela?
Eles se encolheram. Até pouco tempo, quem se sentiria diminuída era eu.
No dia 24 de janeiro, comemorei meu aniversário com mais de 20 pessoas em volta da piscina da minha casa. Fora a minha família, ninguém ali havia me visto de biquíni. Disso, ninguém se deu conta. A única coisa que repararam foi no meu bom humor. Alguns perguntaram o porquê. Não sei se entenderam a resposta:
– Pois é, me libertei."