Kimiko Tamura, The New York Times
Chefe de uma fábrica de saquê centenária no sul do Japão, Kensuke Shichida passou uma semana enchendo a cara em restaurantes londrinos, testando diversos pratos exóticos e confusos: comida de bar, hambúrgueres gourmet, comida francesa, bife Angus, ceviche. A experiência o deixou um tanto maravilhado e um pouco doente, depois de tanta comida.
Aos 43 anos, Shichida não é apenas um comilão: ele está em uma missão para trazer o saquê feito por sua família para os restaurantes europeus e combiná-lo com a culinária europeia, o que significa conhecer um território novo. Fez o que fez por pura necessidade: o Japão tem orgulho de sua história, mas as vendas de saquê têm caído há décadas, e Shichida e diversos outros fabricantes tentam reverter esse declínio antes que seja tarde demais.
- Eu estaria mentindo se dissesse que harmonizar saquê com hambúrgueres não machuca um pouco o meu orgulho japonês, mas precisamos explorar esse caminho se nossa empresa quiser sobreviver - admitiu Shichida. O saquê é uma bebida surpreendentemente versátil. Descobri que ele combina bem com muitas receitas ocidentais, até melhor que vinho e cerveja.
Dono da Tenzan, fábrica de 140 anos, Kensuke Shichida é um dos líderes do movimento que busca valorizar o saquê por meio de novas harmonizações culinárias
Ostras frescas, por exemplo, costumam combinar bem com champanha, ou chablis, que tem uma boa acidez. Mas Shichida, que é dono da Tenzan, uma fábrica de 140 anos, acredita que o saquê funciona ainda melhor: a bebida é mais suave e menos ácida, e sua capacidade de limpar o paladar ajuda a tirar o gosto forte das ostras. E o umami do saquê - uma sensação considerada como "o quinto sabor" - contribui para deixar as ostras mais encorpadas.
Em um jantar recente no restaurante londrino Hixter, o chef Ronnie Murray harmonizou um prato de cordeiro e cogumelos com uma garrafa trazida por Shichida de 75 Junmai - saquê encorpado à base de arroz não polido, uma raridade até mesmo no Japão. Os japoneses geralmente preferem os saquês feitos a partir de um tipo de arroz extremamente polido, responsável por um sabor floral e suave. Por outro lado, o saquê de Shichida possuía um sabor encorpado e amadeirado, com uma acidez moderada que complementava bem o sabor terroso do cordeiro.
- O vinho costuma ser mais ácido, o que corta o sabor da carne - afirmou Gareth Groves, diretor de marketing da Bibendum Wine, loja que anunciou recentemente a compra de saquê de primeira linha vido do Japão. - O saquê não corta tanto o sabor do alimento e o complementa muito bem.
Alguns chefes e amantes da boa cozinha descrevem o experimento com o saquê como um tiro no escuro, mas, para os produtores, o desafio é mais urgente. O consumo de saquê diminuiu consideravelmente no Japão desde os anos 1970, em função de uma queda na natalidade e na opção de muitos consumidores pelo vinho, quase sempre importado, ou por outros produtos nacionais, como cervejas, uísque ou shochu (aguardente japonesa). O Japão exportou 4.536 toneladas de saquê em 2012, mas em sua maioria para restaurantes japoneses, o que limita o público consumidor da bebida. As exportações ainda representam uma parcela ínfima das vendas, e o número de produtores - geralmente antiquados e familiares - diminuiu de 4,6 mil no início do século 20 para mil, atualmente.
- A indústria do saquê não será capaz de sobreviver apenas com o mercado local - acredita Barry McCaughley, consultor de alimentos e bebidas que vive em Londres. - A menos que mudanças sejam feitas, o setor terá morrido em 20 ou 30 anos.
Segundo McCaughley, um dos problemas é a mentalidade insular dos produtores. São homens idosos que ainda tomam as decisões, muitas vezes a muito custo. O setor "não está em consonância com o resto do mundo e os incentivos imediatos do Ocidente", diz McCaughley, que sugere fugir das comparações tradicionais entre saquê e vinho e colocá-lo ao lado das cervejas artesanais, já que o processo de fabricação é similar. Ele acredita que isso irá atrair um público mais jovem em busca de novos sabores.
Lojas e restaurantes estão começando a tentar transformar o saquê na nova bebida da moda, de forma similar às cervejas artesanais, cuja popularidade cresceu muito na Inglaterra. A Arran, uma fabricante escocesa, planeja produzir o primeiro saquê britânico em escala comecial no fim deste ano, tornando-se a segunda fabricante europeia, depois da Nogne O, da Noruega. Muitos bares já estão usando o saquê para fazer coquetéis.
Apesar de toda a aposta nos compradores estrangeiros, os produtores afirmam que seu objetivo é um só: fazer o saquê voltar a ser vendido no Japão.
- Se formos capazes de dizer aos japoneses que os estrangeiros estão adorando nosso saquê, isso seria uma ótima oportunidade para que redescobrissem a bebida, reavivando a demanda - garante Shichida. - Não queremos que essa cultura desapareça. Não mesmo!
A bebida dos deuses
A maioria dos ocidentais vê o saquê como uma bebida clara que acompanha bem o sushi e o sashimi, com um teor alcóolico que varia de 15% a 20%. Acredita-se que tenha tido origem no século 7, tornando-se a bebida dos deuses, de acordo com a religião xintoísta.
Existem cerca de 80 tipos de arroz utilizados especialmente para a produção de saquê, feito à base de arroz fermentado, água e koji - arroz branco misturado com uma espécie de bolor. Embora o vinho geralmente seja servido em taças, o saquê pode ser colocado em uma série de recipientes que alteram sua fragrância, incluindo potes feitos de barro, laca, vidro, porcelana e até copos quadrados feitos de cedro japonês.
Os tipos de saquê variam dos que soltam bolhas, parecidas com as do champanhe, ao namazake, cujo sabor é melhor quando sai direto da tina, sem ser pasteurizado. Namazake significa "saquê cru" e oferece o sabor do etéreo, já que pode ficar pronto em poucas horas. Outros tipos de saquê são feitos à base de yuzu, um cítrico japonês, o que torna a bebida um parente picante do limoncello italiano, ao passo que o umeshu é uma versão cheia de vida do tokaj húngaro.
O koshu, ou saquê envelhecido, é menos conhecido - uma garrafa do koshu 40 anos pode ser vendida a mais de US$ 300. Shigeri Shiraki, cuja fábrica familiar na região montanhosa de Gifu foi fundada em 1835, tenta descobrir como tornar seu Daruma Masamune 20 anos um produto palatável para os ocidentais. Ele é feito manualmente por um punhado de funcionários, apenas durante o inverno, uma prática comum entre os produtores de koshu, que existe desde o século 17. Shiraki afirmou que sua fábrica não utiliza refrigeradores. O saquê produzido por ela possui uma nota salgada que lembra molho shoyo, além de um toque de vinho do porto, xerez e uísque escocês de Islay, com seu sabor defumado. Shiraki sugere o saquê como um acompanhamento para uma sobremesa saborosa, ao lado de uma torta de noz pecan com sorvete de baunilha, ou como um digestivo após a refeição.
**Fotos: Ko Sasaki, NYTNS e Reprodução