Teve aquela vez, depois de um seminário curtinho sobre a obra do Philip Roth (meu autor predileto completara 80 anos naquela semana), que a amiga carioca que anotou o telefone dela pra mim nas costas dum livrinho handmade de haikais puxou um cigarro, enquanto eu destrancava a bicicleta. A gente falava sobre alguma coisa relacionada a casinhos, a pessoas que vão e vêm. Sempre elas - as pessoas e os movimentos. Chegamos então a uma "confissão" dela: havia várias coisas que ela preferia não devolver, e acabavam esquecidas numa gaveta da cômoda.
Não deve ser nada extraordinário ou digno de máxima nota: tenho certeza que essa amiga não é a única que prefere manter certas camisetas, lenços e outros esquecíveis por perto. Conheço mais gente e acho que você também conhece, se puxar bem na memória. Talvez até seja um deles.
O caso é que a amiga tinha se convencido a entregar aquelas coisas todas aos respectivos donos e, nessa época, eu era um cara precisando de férias, tentando escrever qualquer coisa que parecesse ficção. Por isso, propus a ela uma brincadeira: ela me enviaria um descritivo de cada item que ela tinha para devolver (qual a história por trás, porque resolvera manter consigo, se devolver era ou não uma desculpa para reencontrar aquele dono...) e com aquilo eu escreveria histórias. No fim, nada aconteceu. Nem a lista, muito menos qualquer história. Depois de meses desse encontro, mandei-lhe uma mensagem para saber se ela tinha cumprido o desejo de se livrar de todas aquelas memórias. "Não", ela disse. "Mas ao menos a gaveta virou uma caixa". Ao menos.
É preciso fazer uma distinção aqui: não falo bem das memórias que se guarda quando se foi um casal e não se prefere esquecer isso. Então nada aqui faz referência a cartas, fotografias e outros quetais. Como disse ali em cima, falo mesmo é da camiseta emprestada para voltar pra casa e que acabou incorporada ao figurino, ou do clássico caso dos livros que passam de uma biblioteca a outra por inércia. Bater os olhos naqueles itens é reacender na memória aquela noite ou aqueles dias. Esculpe no fluxo da mente a mesma textura da sobremesa daquele jantar, desperta na língua a acidez do café de quando trocaram livros. Revisitar tudo isso não só refresca os ares como é importante para lembrar de como já fomos felizes de tantas maneiras. Ou de como já nos sentimos desconfortáveis. Inadequados. Curiosos.
Ainda que minha amiga não tenha se desfeito das coisas que ocupam a tal caixa, fico me perguntando como faria. Como ligaria para cada um deles, ou para qual deles apenas mandaria um sms. Quais escolheria que ele viesse recolher sua propriedade, e para quais apenas deixaria uma caixa na portaria do prédio. As perguntas para ela, claro, também valem para nós. Como nos portaríamos com o pedido de devolução de certos itens? Que tipo de conversas decidiríamos permitir acontecer? Tantas dúvidas rodeando uma camiseta, quem diria...