Para pelo menos uma em cada dez mulheres, o ciclo da vida parece ter ficado invertido. Depois da felicidade de descobrir uma gravidez, vem a decepção: o fim da gestação antes do nascimento.
Perder um filho por aborto espontâneo é mais comum e mais doloroso do que se imagina. Mulheres que vivem essa dor física e emocional – causada, na maioria dos casos, até o fim do primeiro trimestre de gestação – desejam o silêncio e o recolhimento. Pais, irmãos e companheiros poucas vezes compreendem profundamente o ocorrido e as consequências que a experiência pode causar.
– Infelizmente, o assunto é tabu em um século em que a informação é feita de forma tão rápida e lúcida. A necessidade de partilhar, dividir, perceber que não estão sozinhas é vital. As mulheres que perdem um filho possuem muitas perguntas, dúvidas que não expõem pela incompreensão que se formou ao redor do tema. Elas procuram o “seu mundo”– desabafa Maria Manuela Pontes, que acaba de lançar o livro Maternidade Interrompida – O drama da perda gestacional (Editora Ágora, 216 páginas), uma espécie de desabafo de mulheres que enfrentaram o problema que atemoriza gerações.
Sem escolher raça ou classe social, os abortos espontâneos do primeiro trimestre da gravidez são geralmente causados por anormalidades genéticas, principalmente trissomias como a Síndrome de Down, explica o ginecologista e obstetra Plinio Vicente Medaglia Filho, chefe do Serviço de Obstetrícia do Hospital São Lucas da PUCRS. Má formações uterinas, toxoplasmose e infecções congênitas, como a rubéola, também podem interromper a vida que se forma no útero materno. O risco, entretanto, é ainda maior quando há a presença de doenças crônicas (reumatológicas, renais, endocrinológicas, hipertensão, entre outras) e com o avanço da idade, geralmente a partir dos 35 anos – época em que é cada vez mais comum a gravidez.
– O aborto espontâneo é uma perda na qual a paciente faz luto, e a família e os amigos devem entender como tal. A paciente deve ser apoiada, principalmente psicologicamente – diz o médico.
Depois de uma primeira perda, a chance de recorrência aumenta. Após dois abortos sucessivos, a probabilidade de ocorrer novamente é de 24%. Após o terceiro, a chance de uma reincidência é de 30%, diz Janete Vettorazzi, ginecologista e obstetra do Hospital Mãe de Deus e do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. A explicação para os casos seriam fatores anatômicos (miomas e incompetência do colo uterino), genéticos, imunológicos, hormonais (alterações na tireoide e diabetes), infecciosos, alterações na coagulação e o consumo de cigarro e álcool.
– A consulta pré-concepcional é importante para a paciente receber orientação médica e fazer exames. Aquelas com doença crônicas ou que utilizam medicações de uso contínuo devem consultar o médico antes de suspender a anticoncepção – alerta Janete.
Depois que o corpo demonstra-se preparado para uma nova concepção – com o esvaziamento da cavidade uterina –, os médicos recomendam aguardar de dois a três ciclos menstruais para uma nova tentativa. É quando surge a nova esperança de gerar uma vida.
Alegria da nova gestação ajuda a esquecer a dor
“Estou grávida, com 37 semanas e seis dias. Desde 22 de julho, de repouso, em casa, pois a Antônia parece que quer chegar antes do tempo. Mais um susto, na busca de um sonho.
Antes de engravidar da Antônia tive dois abortos retidos, necessitando fazer duas curetagens, e, além disso, eu e meu marido ainda precisamos fazer um tratamento imunológico, para melhorar nossas chances de sermos pais. A interrupção das duas gestações, uma com seis e outra com oito semanas, foram momentos de tristeza, dúvida, medo, impotência.
Essas sensações não desapareceram, mas passaram a assombrar os momentos alegres da espera da Antônia (principalmente agora, na reta final, com o susto de estar com dilatação antes do tempo). A perda de um bebê não é algo que se queira falar ou lembrar, e quando isso ocorre duas vezes é ainda pior. Não é possível resumir toda esta experiência em poucas palavras, mas ao mesmo tempo parece não haver palavras exatas para se definir essa perda.
Eu e meu marido não escondemos de ninguém as nossas perdas, mesmo não tendo contado a ninguém que eu estava grávida, pois, como tive que fazer curetagem, as duas notícias – a imensa alegria, por uma vida, e a profunda tristeza, em razão do aborto – foram transmitidas, nas duas vezes, a toda a família e amigos, de forma simultânea.
Tudo que acontece na vida da gente deixa marcas, não há como apagá-las. Mas a marca maior que eu espero ter é a do nascimento da Antônia, que mais do que planejada foi desejada de todo coração.”
> Leia a entrevista completa com a escritora Maria Manuela Pontes e deixe comentários no blog www.zerohora/meufilho
> Você já passou por uma perda gestacional? Mande seu relato para meufilho@zerohora.com.br Publicaremos os textos no nosso blogALINE, 35 ANOS, MORA EM PORTO ALEGRE E ESTÁ À ESPERA DE ANTÔNIA
Quando o bebê não vem
Seis perpétuos meses, duas silenciosas perdas, dois desejados filhos de quem nunca conheci o pequeno rosto. Dois bebês que amei sem nunca os ter tido nos braços. É assim que tudo começa e que parte de mim termina.
Engravidei em agosto de 2008, com 28 anos, tal como tínhamos planejado. Uma felicidade imensurável desabrochava cá dentro, algures no meu peito. Não sei exatamente onde nascia, mas a sentia explodir por todos os poros da minha pele. (...)
Aqueles risquinhos cor-de-rosa possuíam esse poder, o da felicidade plena. Ilustravam aquele teste de gravidez com uma autoridade de destino cumprido, segredavam-nos que o nosso filho nasceria em maio e esse fato dava-o como adquirido.
Nada poderia interromper o meu estado de felicidade, parecido com aquele que experimentamos quando nos apaixonamos, em que tudo culmina em nós.
Nunca cheguei a ter uma barriga notória, proeminente, mas isso não me impedia de afagá-la constante e repetidamente (...)
Às seis semanas de gravidez um corrimento rosa pálido usurpa-me esse sorriso e no seu lugar instala-se a hesitação. Apesar do repouso, às sete semanas um corrimento semelhante repetia-se e empurrava-me às urgências. Pela primeira e última vez vi o meu bebê, ali, no monitor, tão perto e tão longe de cingir-se a mim. É uma sensação de distância no espaço muito real.”
ANA LAMY, EM UM DOS TRECHOS DO LIVRO MATERNIDADE INTERROMPIDA O DRAMA DA PERDA GESTACIONAL
"É um dos piores lutos"
Maria Manuela Pontes, organizadora do livro Maternidade interrompida – O drama da perda gestacional, conhece de perto a essência de sua obra. Licenciada em Humanidades, a escritora portuguesa casou-se em 1997 e travou uma luta pela maternidade por três anos. Após perder dois filhos na gravidez, fundou a associação Projecto Artémis com o intuito de apoiar mulheres vítimas de perda gestacional. Para coroar sua luta, deu à luz Vitória, em 2002, e Mateus, em 2006.
O caderno Meu Filho conversou com ela sobre o desafio de superar a perda de um filho que ainda não veio.
Meu Filho – Como sua experiência ajudou na hora de escrever o livro?
Maria Manuela Pontes – Há sete anos, perdi meu primeiro filho. Seis meses depois, perdia o segundo. Até este momento, não imaginava que esta realidade existia. O aborto morava nas minhas mais profundas utopias. Quando me deparei com este sentimento vazio, enfrentei momentos, coisas, pessoas que de outra forma jamais me permitiria transcrever para o papel algo tão íntimo.
A perda gestacional não se ouve, mal se vê. Nunca poderia ter falado nela se não a vivesse. Consegui perceber o que todas essas mulheres querem ouvir e como querem ouvir.
Meu Filho – Quais as consequências psicológicas para quem perde um bebê?
Maria Manuela – Esta é uma das perguntas mais importantes, mas a menos valorizada. Uma mulher que perde um filho ao longo da gestação vivencia a dor em silêncio. Busca formas de sofrimento solitário, em recantos da casa, da rua, do trabalho, nos locais mais absurdos porque a sociedade não está preparada para respeitar e dignificar a dor. Insistem na palavra “esquece”, como se fosse tão simples e natural esquecer um filho que geramos. É um dos piores lutos, porque não existe um ser cuja imagem guardamos para recordar, não existe um local onde possamos estar mais próximos, não existem momentos de partilha, apenas um vazio devorador.
As frases “não chores mais, daqui a pouco tens outro” ou “melhor assim, do que nascer deficiente” são muito utilizadas, face a um momento marcado pela impotência de nada fazermos para reverter a situação.
Meu Filho – Qual a importância de compartilhar a dor?
Maria Manuela – Partilhar é sinônimo de aceitação. Aceitar a partida daquele bebê serenamente, confiar no que o futuro lhes reserva. Acreditar que tudo irá correr bem numa próxima gestação. Pode significar a transformação da dor em saudade. As pessoas esquecem que, depois de uma perda, vem uma nova etapa, a tentativa de voltar a gerar. O medo e a ansiedade que circundam essa gestação são devastadores, porque conhecemos o outro lado da maternidade. Sabemos que nada depende de nós e que, a qualquer momento, o nascimento pode transformar-se no nosso pior pesadelo.
Meu Filho – Quando os filhos vêm, as mulheres ficam mais protetoras?
Maria Manuela – Sem dúvida. Tornam-se mais protetoras porque a sensação de perda está muito presente. Inseguras também. Depois que os bebês nascem, os cuidados e a atenção são mais focalizados. Estamos expostas a medos que fazem parte do nosso dia a dia e que seriam desconhecidos de outra forma. Mas estes dois fatores resultam de um luto não realizado, de estas mulheres estarem entregues a elas próprias em alturas que a ajuda especializada (ou não) deveria ter tido papel fundamental.
Aborto espontâneo exige cuidados médicos e atenção da família
Redação Donna
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