Foi a falta de emprego que motivou a artesã Maude Jules a deixar a cidade de Miragôane, no Haiti, e vir para o Brasil em 2014, decidida a recomeçar a vida em Caxias do Sul, onde alguns familiares já moravam. O primeiro trabalho que encontrou foi em uma fábrica de chocolates. O segundo, onde atua desde 2017, é na indústria da moda. Maude é uma das colaboradoras da marca gaúcha Volta Atelier, que emprega mulheres migrantes e refugiadas na etapa de costura das bolsas da grife de moda sustentável, que tem sede em Nova York.
É um trabalho que Maude faz de casa, garantindo o seu sustento ao mesmo tempo em que se dedica à criação de seus três filhos — o pagamento é por peça e o salário costuma ficar em torno de R$6 mil. Regularmente, Maude e sua colega de trabalho Artune Leveille, também vinda do Haiti, recebem em suas casas linha, agulha e os retalhos de couro que transformarão em bolsas e mochilas. Depois de prontas, as peças são coletadas por um agente de logística, enviadas para Nova York e comercializadas nos Estados Unidos, México e Japão.
Como a marca está crescendo e planeja contratar mais migrantes nos próximos meses, Maude e Artune também têm ministrado oficinas para treinar mais cinco mulheres haitianas e venezuelanas na arte da costura dos artefatos em couro.
— Aprendi a costurar rápido, mas não é tão fácil assim. Então, falei para as meninas da oficina que, se elas conseguem aprender, esse trabalho é uma boa opção, vai ser bom pra elas. Eu tenho vários gastos, mas ainda mando algum dinheiro para dar uma ajuda para minha irmã e meus dois irmãos que estão no Haiti. Sei o que eles estão passando lá, então, se ganho mais, tenho que ajudar — afirma Maude.
Cuidar das pessoas e do planeta
A porto-alegrense Fernanda Daudt criou a Volta Atelier buscando fazer moda de forma diferente, com mais cuidado, mais calma, colocando em prática um processo conhecido como upcycling, que consiste basicamente em pegar um material que seria considerado lixo pela indústria e elevá-lo à condição de um produto novo.
No caso desta marca, o material que ganha um novo ciclo é o couro. Além disso, todas as bolsas são costuradas à mão e há poucos exemplares de cada modelo: a exclusividade costuma ser uma consequência do upcycling, já que a matéria-prima é limitada.
Antes de se mudar para Nova York e montar a empresa, Fernanda trabalhou com consultoria na indústria coureiro-calçadista do Rio Grande do Sul e assim firmou parcerias com fábricas de quem hoje compra a maior parte dos retalhos.
— No tempo em que trabalhei pesquisando tendências, viajei muito para a China, Europa e já não aguentava mais encontrar verdadeiras montanhas de resíduos no fundo das fábricas. É nesse momento que tu começas a ver a consequência da indústria da moda. A Volta nasceu quando eu entendi que existia espaço no mercado para um produto feito de uma forma diferente — afirma Fernanda.
Selo de exclusividade
Por questão de custo, de relações e de logística, já que a maior parte do material utilizado nas bolsas é gaúcho, Fernanda optou por concentrar a produção no Rio Grande do Sul, embora seja ela a principal responsável por desenvolver a modelagem das bolsas, direto dos EUA. Em São Leopoldo, uma equipe faz a seleção do couro, o corte e prepara o kit que é enviado para Caxias, onde as refugiadas fazem a costura. Cada peça recebe também uma etiqueta com o nome da artesã que a costurou.
A gente não salva ninguém. São essas mulheres que nos empoderam
FERNANDA DAUDT
Empresária
— Faz sentido ter, além do pilar da responsabilidade ambiental, o da responsabilidade social, que de fato caminham juntos. Um produto com propósito tem um outro valor. E eu falo isso com zero paternalismo, pois a gente não salva ninguém, são essas mulheres que nos empoderam. É trabalhar a moda de forma a cuidar das pessoas e do planeta, resgatando a conexão entre quem fez o produto e quem está usando — afirma Fernanda.
Maude explica que gosta de costurar e que consegue trabalhar em várias bolsas ao mesmo tempo, o que faz também porque prefere não deixar o trabalho acumular. Ela estima que uma peça pequena leve cerca de duas horas para ser costurada. Para as maiores, o tempo é mais longo.
— Quando tem trabalho na minha casa, tenho que trabalhar, não aguento ficar parada. E não é por exigência da Fernanda não, é coisa minha. E, claro, quando trabalho mais, ganho mais — comenta a artesã.
Só foi possível combinar moda, oportunidade de trabalho e acolhimento pela atuação do Centro de Atendimento ao Migrante (CAM) de Caxias do Sul, observa Fernanda. O órgão se ocupa da regularização migratória e atua para que os indivíduos possuam a documentação necessária para terem seus direitos garantidos e também o acesso às políticas públicas no Brasil.
É o CAM que seleciona mulheres para participar das oficinas da Volta Atelier, onde são capacitadas e possivelmente empregadas junto à marca. Para a assistente social do local, Geraldine Ruffato, o projeto tem contribuído para o combate ao preconceito e a garantia de uma atividade profissional digna para elas.
— Já é histórica a dificuldade das mulheres acessarem o mercado do trabalho. Mas quando juntamos isso ao fato de serem migrantes e, muitas vezes, negras, é assustador ver como sempre são as últimas incluídas na sociedade. É ótimo ter ações que percebem esse problema — pontua Geraldine.