Natação, tricô e crochê. Este é o combo de Marisa Monte para manter a calma, ainda mais quando os planos mudam quando menos se espera. A cantora pensava em entrar em estúdio em maio de 2020, tinha repertório pronto, aguardava apenas a hora certa para gravar um novo disco. Mas nem sempre as coisas acontecem da maneira como imaginamos. Em março do ano passado, a pandemia chegou para mudar tudo. Nas braçadas na água, Marisa encontrou uma forte aliada para a saúde mental, e das linhas e agulhas veio a lição para os dias de espera:
— Fui fazer aula (de tricô e crochê) alguns anos atrás. A professora falou: “Minha filha, não briga com a linha porque você perde”. E eu trago isso para a vida: não briga com a vida porque você perde. A gente tem que entender quando não tem muito o que fazer, a não brigar para não perder, aguardar para quando der para enfrentar de novo. Até lá, tem que desenrolar o nó devagarinho, com calma.
A pausa e o isolamento adiaram, mas não acabaram com a ideia de reencontrar o público por meio de sua música. Pelo contrário, o tempo fez crescer o repertório. Até que, em novembro, Marisa entrou em estúdio novamente, no Rio de Janeiro, com uma equipe pequena, e mediante testes de covid-19, para a gravação de seu primeiro álbum solo em uma década.
Em vez das viagens imaginadas para encontrar os músicos parceiros, a produção foi feita parcialmente a distância, com muitos encontros online. Assim, em 1º de julho de 2021, no dia em que completou 54 anos, a artista apresentou Portas ao mundo, como uma forma de comemorar seu aniversário – e a vida – em um momento em que os encontros e as celebrações ainda são restritos.
Uma coisa que aprendi logo no começo da pandemia é que não uso mais a expressão 'me ajuda aqui', mas 'vamos colaborar'. 'Me ajuda' parte do pressuposto de que o trabalho é meu e eles vão me ajudar, colaboração é de todos.
Mas, se a pandemia a afastou dos shows ao vivo por tempo indeterminado, por outro lado a aproximou do convívio com os filhos, Mano Wladimir, 18 anos, e Helena, 12, e do marido, o empresário Diogo Pires Gonçalves. A agenda cheia de viagens deu espaço às trocas constantes no dia a dia em família e à instituição de um modelo colaborativo no lar – aliás, dica que Marisa faz questão de compartilhar com outras mães:
— Todo mundo tem que ser útil, fazer sua parte. Uma coisa que aprendi logo no começo da pandemia é que não uso mais a expressão “me ajuda aqui”, mas “vamos colaborar”. “Me ajuda” parte do pressuposto de que o trabalho é meu e eles vão me ajudar, colaboração é de todos.
Essa horizontalização das tarefas está presente também na vida profissional da cantora, que faz questão de ressaltar a importância de todos os envolvidos na produção de seus discos. Em entrevista por vídeo à Revista Donna, Marisa contou que gosta de estar cercada de pessoas melhores do que ela em todas as áreas, para que possa aprender e evoluir. Em uma conversa bem-humorada, transparecendo toda a calma que a prática de natação, o tricô e o crochê têm agregado à sua vida, a artista falou sobre os desafios em meio à pandemia, a rotina em família, sobre presença e representatividade feminina na música, citou a sua trilha sonora favorita e revelou o que foi sua “janela para o mundo” em tempos de isolamento. Confira a seguir:
Que portas você escolheu abrir e que fizeram diferença na sua vida?
A música é uma grande porta na minha existência, me conecta comigo, com o mundo e com as pessoas. Não consigo imaginar minha vida sem isso, com todos os encontros, os ganhos, as coisas que a música me trouxe. Como mulher, tem a porta da independência, do protagonismo feminino no que faço. É um meio bastante masculino, em que tenho trabalhado há 35 anos, botando minha sensibilidade feminina a serviço da música, através das composições, com muitas questões e sentimentos que me conectam dessa forma sutil, às vezes inexplicável, com outras mulheres.
“Eu sigo o meu caminho e onde vou só levo coragem” é uma mensagem em destaque no encarte de Portas. Como mulher, como artista, o que te traz essa coragem?
Como mulher, vejo que a gente é muito mais potente hoje do que há cem anos, o quanto foi mudando essa profissão e a maneira como as mulheres se veem como possíveis compositoras, construindo seus próprios repertórios. Quando era pequena, os homens compunham para as mulheres. Acho que a coragem vem dessa oportunidade que você vê que existe e quer entrar. Esse espaço precisa ser ocupado. Apesar da enorme dificuldade que ainda é ser mulher no Brasil e no mundo, em alguns lugares muito pior do que aqui, acho que a gente tem muito mais potência e muito mais possibilidade de transformar nossa própria existência. As meninas já são educadas para ter independência, para ocupar o próprio espaço.
Você lançou o disco no mesmo dia em que completou 54 anos. O que Portas diz de seu momento de vida e na carreira?
Quis lançar no meu aniversário porque é um dia de celebração da vida, e quis ir ao encontro das pessoas com essas músicas. É o que eu podia fazer enquanto celebração nesse momento onde os encontros ainda são perigosos e as celebrações são restritas. Nesse momento de tanta dor, perda, de insegurança, angústia, que compartilho disso tudo também, a gente precisa ainda poder celebrar a vida e estar afinado com os valores compatíveis com isso. E é um disco de afirmação desses valores. Apesar de todo o negacionismo que vemos por aí, quero ser afirmacionista. Afirmar a importância da educação, da arte, da ciência, do meio ambiente, do amor, da gentileza, de tudo isso que a gente precisa cultuar e preservar para seguir em frente no nosso próximo passo de progresso, que certamente virá.
Como tem sido o convívio com a família em isolamento na pandemia?
Bem mais intenso, porque nunca fiquei tanto tempo assim sem viajar, sem pegar um avião, sem fazer show. Por um lado, fiquei distante dessa prática profissional, por outro, ter tido a oportunidade de ficar mais disponível para a família e estar intensamente com eles foi um privilégio. A gente reforçou, estreitou os laços de colaboração em casa, o conhecimento de um sobre o outro e teve um ganho muito grande na educação deles (filhos) em casa. Hoje todo mundo colabora, todo mundo cuida das suas coisas, lava a roupa. Entenderam a importância da colaboração dentro do núcleo familiar. A família é uma comunidade, então todo mundo tem que ser útil, fazer sua parte. Uma coisa que aprendi logo no começo da pandemia é que não uso a expressão “me ajuda aqui”, mas “vamos colaborar”. “Me ajuda” parte do pressuposto de que o trabalho é meu e eles vão me ajudar, colaboração é o trabalho de todos.
Como é a Marisa mãe? Você identifica diferenças na sua relação com Mano Wladimir e com Helena?
Os princípios, os grandes valores são os mesmos. Mas eles têm idades diferentes, os assuntos, os interesses, as demandas são diferentes. A gente tem uma relação de muito diálogo, muito aberta, de amizade mesmo, não sou uma mãe autoritária, mas sou honesta, franca nas coisas.
Com esse convívio maior, o que você tem aprendido com os seus filhos?
Eles têm o domínio muito maior da tecnologia, interagem sem a menor cerimônia. Para eles, os encontros online são bem satisfatórios, acho bem interessante isso. Eles se encontram e têm vários tipos de atividades online. Nesse sentido, durante a pandemia, foi bastante positivo a gente ter a tecnologia. Apesar das críticas ao excesso de telas, nos possibilitou trabalhar e manter as relações sociais também. Aprendo todo dia, eles sempre trazem coisas novas que assistem, músicas que ouvem, novas playlists, palavras... Outro dia aprendi “normie” (risos), que é tipo “básico”. Tem muitas dessas gírias, é que eu não sei tudo. Agora, eles são muito bem informados, com a internet acompanham de tudo.
A natação tem sido uma aliada. Gosto de fazer exercícios porque acho que dinamiza o sentimento. Não é só pelo físico não, pelo emocional mesmo. Ajuda nos momentos em que se está com ansiedade, com angústias, é como se saísse renovada da água.
Onde você tem buscado calma atualmente?
Na natação. É uma atividade que recomendo. Porque você entra na piscina, um lugar onde o telefone não entra. Aquele mundo todo azul, e que não tem impacto, é uma resistência suave, constante, é bem terapêutico. Entra ali cheia de pensamentos, sai com outros. Troca sua energia mental. A natação tem sido uma aliada. Gosto de fazer exercícios porque acho que dinamiza o sentimento. Não é só pelo físico não, pelo emocional mesmo. Ajuda nos momentos em que se está com ansiedade, com angústias, é como se saísse renovada da água. É uma coisa que a música também ajuda, a processar dores, perdas, tristezas. Tive isso em relação a outros artistas, de a música ajudar a entender o que a gente está sentindo. Música, arte, leitura, convívio com os animais são bastante relaxantes também.
Falando nisso... o disco novo traz a faixa A Língua dos Animais. Se os animais falassem, o que você acha que eles diriam?
Ah, mas eles falam (risos). Eles têm uma linguagem não verbal. Primeiro que eles entendem português fluentemente, só não conseguem falar as palavras, mas a gente percebe tudo, quando quer sair, quando quer que abra a porta, quer comida, quer água, quer dormir, está cansado. Eles, numa linguagem não verbal, dizem muita coisa. Principalmente quando vão ficando mais velhos, vão desenvolvendo a comunicação com o tempo.
Você diz que as pinturas da Marcela Cantuária foram uma das janelas que você mantinha aberta para o mundo durante o isolamento. Para onde essas ilustrações te levavam?
Ela tem um trabalho bastante feminista, faz homenagens a mulheres que são símbolos das suas lutas, sociais, ambientais, de momentos diferentes da História, principalmente latino-americanas. Como a música é um meio muito masculino, tentei criar um certo equilíbrio na parte do álbum visual e ter uma mulher. Ela trabalha muito com o oculto, com os signos, tem um pouco do realismo fantástico. A Marcela criou um oratório que me colocou nesse lugar de uma sacerdotisa da música, segurando uma chave e o violão, como se estivesse convidando as pessoas para virem para esse campo existencial, um pouco descolado da dureza do nosso dia a dia, mas que a gente precisa, é lidar com o sonho. Ela fez todo um universo pictórico, que dialoga com esse momento de reclusão, onde estava em contato com a memória e a imaginação e com o espaço físico reduzido. Conseguiu extrair de mim todas essas referências e traduziu naquelas obras lindas. A Marcela foi ouvindo as músicas do álbum o tempo todo, estudando quem eram meus parceiros, e muitos deles aparecem também. Apesar de ser um trabalho solo, envolve muita gente, são muitas horas de vida de muitas pessoas, que eu estou representando, mas que não faria sem elas. Represento um time enorme, numa liderança que faço de uma forma muito horizontal, não sou autoritária em nada. Me cerco de pessoas melhores do que eu para aprender e evoluir, senão vou involuir.
Qual foi a sua trilha sonora no isolamento e que te ajudou na produção do disco?
Na minha coleção de LPs, tem muitas coisas que fazem parte da minha formação lá atrás, como Jorge Ben, Paulinho da Viola, Elis Regina, Milton Nascimento, Bob Marley, que estão na minha infância, até mais antigas, como Mario Reis, Francisco Alves, Carmen Miranda, Assis Valente. Tem aqueles LPs que ouvia na adolescência, faço uma visita a eles. Tem um ali que ouvi bastante, que é Ravi Shankar, incrível, orquestra com cítara, superfiníssimo, um LP maravilhoso. Entre os mais recentes tem BaianaSystem, Ana Frango Elétrico, que é uma jovem do Rio, onde conheci o arranjador para tocar comigo, o Antônio Neves, que é trombonista e baterista, que fez os arranjos do disco dela. Adorei e convidei para fazer uns arranjos de metais no meu disco. Tem também Ava Rocha, uma compositora jovem que acho interessante, o disco novo da Mallu (Magalhães), muito bonito também, e os clássicos de sempre, Chico Buarque, Chopin, Ella Fitzgerald, Billie Holiday, H.E.R., que é uma cantora jovem R&B que adoro, americana. A gente vai misturando essa playlist individual. É engraçado como antigamente a música era escutada muito mais no ambiente coletivo, em casa, na sala, todo mundo ouvia junto. Hoje em dia é cada um no seu fone, cada um com a sua playlist, se tornou um hábito mais individualizado.
O que mudou da Marisa de 10 anos atrás, data de seu último álbum solo?
De lá para cá, fiz muitas coisas, teve a turnê de O Que Você Quer Saber de Verdade?, disco ao vivo, DVD, produto que eu lancei, mas que não é inédito, depois coleção, turnê com o Paulinho da Viola, quando até fui a Porto Alegre. Depois fiz Tribalistas, que é todo inédito, mas não é solo, turnê e disco ao vivo com os Tribalistas, depois produzi um disco do Cezar Mendes, que é um compositor maravilhoso, junto com o Arto Lindsay e Mario Caldato Jr., depois o Cinephonia que foi o relançamento de músicas para o streaming, e finalmente esse álbum (Portas). O que mudou é o tempo mesmo, que de lá para cá tive mais maturidade, mais domínio dos meios de produção, mais experiência, novas relações, novos parceiros que vieram, o Silva, o Pretinho da Serrinha, o Chico Brown, o Marcelo Camelo. Tem a renovação de algumas parcerias, e as já tradicionais, como o Carlinhos (Brown). Aliás, não tem nada do Carlinhos nesse último trabalho porque a gente esvaziou nosso baú com Tribalistas, mas ele aparece como músico, tocando com a gente, e o Arnaldo (Antunes), Nando (Reis), é um pouco uma manutenção e ao mesmo tempo uma renovação de parcerias. Teve também esse desafio de produzir nesse momento, no isolamento.
A gente tem que entender quando não tem muito o que fazer, a não brigar para não perder, aguardar para quando der para enfrentar de novo. Até lá, tem que desenrolar o nó devagarinho, com calma.
Está com saudade dos palcos?
Muita saudade de encontrar o público. Não tem nenhum show marcado, nenhuma perspectiva, a gente ainda não consegue ter essa segurança de marcar shows porque depende de o público estar vacinado e dos níveis de contágio do coronavírus estarem muito menores. A gente tem que ser muito responsável nisso, muito cuidadoso. Conseguimos fazer esse projeto inteiro até agora sem ninguém se contaminar, então temos que seguir com esse mesmo cuidado e responsabilidade. Isso é importante. Mas, no dia que rolar esse show, vai ser emocionante, para mim e para todo mundo que voltar aos palcos. Vejo pelos amigos músicos que estamos com muitas saudades, a gente nunca passou tanto tempo longe dos palcos, a pandemia impactou muito o setor cultural. Não está tendo show, festival, mas também não está tendo produção cinematográfica, está tendo algumas séries, aí transfere, adia, é difícil. No futuro, vamos olhar para trás e ver um apagão, porque pouca gente pôde produzir, está bastante limitada a possibilidade de apresentação, mas já temos uma luz no fim do túnel, que são as vacinas.
Como você imagina que será essa retomada?
Apesar de vacinados, a gente tem que continuar tendo todos os cuidados até que realmente seja seguro. Primeiro, acho que vamos poder tirar as máscaras ao ar livre, aí todo um processo pouco a pouco, a gente tem que ter paciência. Eu faço tricô e crochê, fui fazer aula alguns anos atrás. A professora falou: “Minha filha, não briga com a linha porque você perde”. E eu trago isso para a vida: não briga com a vida porque você perde. A gente tem que entender quando não tem muito o que fazer, a não brigar para não perder, aguardar para quando der para enfrentar de novo. Até lá, tem que desenrolar o nó devagarinho, com calma. Tricô e crochê também são muito bons para a calma, como uma oração, você fica ali fazendo, é bem relaxante, recomendo para as mulheres que estão nos lendo. Natação, tricô e crochê. É o combo. E conversa com animais (risos). E escutar discos de outros artistas também. Eu, pelo menos, se acordar num domingo e colocar Paulinho da Viola, melhora meu dia.