O carro corta uma estrada sinuosa, cheia de altos e baixos. Pela janela, por entre a vegetação que emoldura as curvas, percebe-se um discreto portão, posicionado entre colunas de pedra. Quando esta entrada se abre, já é possível distinguir as formas pontiagudas dos ciprestes e o colorido das flores que fazem companhia a esculturas no jardim. Ao fundo, o casarão surge imponente em contraste com o verde, e o fio de fumaça branca que parte da chaminé da lareira leva o olhar até os personagens principais deste cenário: vinhedos, que cobrem as colinas com seus galhos retorcidos.
Pela descrição, você é capaz de jurar que a cena se passa em uma estradinha escondida entre os parreirais da Toscana ou da Provence, não é? Não, não. Isso tudo está aqui mesmo, na Vila Nova, zona sul de Porto Alegre, alguns minutos distante do centro da cidade. Quase como mais um elemento da improvável paisagem está o idealizador deste pequeno universo, o executivo aposentado Luiz Alberto Barichello, 67 anos, sonhador inveterado e apaixonado incurável por tudo o que se relaciona a vinho. Tanto que ergueu, em plena Capital, uma vinícola equipada com o que há de mais moderno para vinificação das uvas que produz em cerca de seis hectares, entre fontes de água mineral e antigas jazidas de granito-rosa.
— Fazer vinhos é um ato de criação, um exercício de criatividade. Mas, mais do que tudo, é uma paixão — define.
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Cerca de três mil garrafas do Villa Bari Gran Rosso saem da cantina em anos de boas safras. Quando a produção nos vinhedos não satisfaz, Barichello simplesmente não fabrica. Para ele, vinho é a expressão da natureza. Quando ela não se manifesta bem, não adianta maquiar. Nos vinhedos, estão plantadas castas tradicionais como cabernet sauvignon, cabernet franc, merlot, tannat e um pouquinho de chardonnay para fazer espumante em lotes muito pequenos, de 700 a 800 garrafas, apenas para presentear e brindar com amigos:
— Não pretendo comercializar o meu espumante, é só para consumo mesmo. Até porque, além de plantar pouca chardonnay, os passarinhos comem a metade antes da colheita. Não me importo, eles também precisam comer, né?
Diferente do que se costuma vinificar no Brasil, o Villa Bari Gran Rosso tem o seu processo de produção inspirado em um dos maiores clássicos do mundo do vinho, o italiano Amarone. Para entender a alma deste tinto porto-alegrense, porém, é preciso contar um pouco da trajetória do vinhateiro que o criou. Nascido em Garibaldi e neto de imigrantes italianos da região do Vêneto, Barichello deixou a casa paterna aos 17 anos, atraído pelo amor de uma menina que morava na Capital. Ao chegar à cidade grande, foi logo procurar emprego em rádio, ofício que praticava desde os 13 anos em sua terra natal. O namoro não vingou, mas Porto Alegre foi o lugar ideal para o crescimento profissional do guri, que se tornou executivo da área financeira.
Mas e o vinho? Bem, com este Barichello convive desde o nascimento, assistindo ao pai e ao avô fabricarem a bebida de forma caseira para consumo próprio. As viagens que fez ao longo da vida sempre tiveram ao menos uma parte dedicada a conhecer e aprender mais sobre novos vinhos e diferentes regiões produtoras ao redor do mundo. Em suas andanças, caiu de amores pela Itália, onde conheceu e fez amizade com vinicultores - entre eles, o lendário Giuseppe Quintarelli, um dos mais importantes produtores de um vinho singular existente apenas naquela parte do país, o Amarone. A particularidade deste tinto é ser feito com uvas apassitadas, ou seja, que depois de colhidas são armazenadas em ambientes com baixíssima umidade para que se desidratem parcialmente. Como diz o nome, as uvas tornam-se quase passas e, depois disso, são vinificadas. O resultado é uma bebida de teor alcoólico mais alto e muito estruturada, com grande capacidade de guarda. Enfim, um clássico do Velho Mundo.
Com o conhecimento adquirido com Quintarelli e o encorajamento de um agrônomo, Barichello começou a plantar as primeiras videiras no terreno acidentado e pedregoso na zona rural de Porto Alegre em meados da década de 1990. No início dos anos 2000, nasciam os primeiros vinhos Villa Bari.
— Para fazer estes vinhos, uso a mesma técnica de apassitar as uvas, para concentrar o açúcar. Depois de vinificados, eles envelhecem em barricas aqui mesmo, na cantina. E depois eu faço, junto com a enóloga, o corte mais adequado — explica.
O resultado é um vinho diferente, uma espécie de surpresa para os paladares acostumados ao estilo de vinho feito na América do Sul - em geral monovarietais com presença pronunciada de madeira. A pequena produção é vendida somente por meio da internet para compradores do Brasil, dos Estados Unidos e do Canadá.
Aumentar a produção? Nem pensar. E, para quem nunca imaginou fazer enoturismo em Porto Alegre, conhecer a sede da vinícola é um programa imperdível. Construído em meio a paredões de granito-rosa, o casarão foi sendo erguido aos poucos desde que Barichello adquiriu a propriedade, em 1975. O que era a casa de campo da família foi ganhando melhorias e ampliações ao longo dos anos. Além da estrutura da vinícola, com tanques de fermentação e caves de envelhecimento, também foram surgindo novas dependências até ficarem prontos, há pouco tempo, sete amplos apartamentos anexos que são o projeto de um hotel, com espaço para eventos e conferências. Nada, no entanto, foi oficialmente inaugurado ainda.
— Eu nunca parei as obras nesta propriedade, porque não posso parar. Preciso estar constantemente sonhando e construindo. Mas não vou abrir o hotel se não encontrar alguém competente e de muita confiança para administrá-lo.
Mesmo assim, é possível visitar a Villa Bari e conhecer parte do sonho da vida de Barichello. Basta entrar em contato para reservar e torcer para que ele esteja disponível. Ah, sim, porque o vinhateiro também gosta de acompanhar de perto as visitas e conduzir as degustações com quem chega. Não aceita perder nenhuma emoção de mostrar seus tesouros: os ciprestes que lembram a Toscana, as araucárias que remetem à serra gaúcha, os moirões de granito que escoram as videiras, herança de tempos antigos, as obras do amigo Xico Stockinger que ornam o jardim. Depois de ver o homem de porte robusto e cabelos grisalhos andar por entre as videiras e falar delas com tanta paixão, é fácil compreender como ele conseguiu extrair vinho das entranhas de Porto Alegre.
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Artesão de dois mundos
Mais um detalhe dificulta a vida do visitante: ao longo do ano, Barichello passa somente seis meses em sua vinícola porto-alegrense. Durante alguns meses do inverno, período de dormência e poda dos vinhedos, e no final do verão, quando ocorre o amadurecimento e a colheita das uvas, o vinhateiro fica em terras gaúchas para acompanhar os principais momentos da safra. O restante do tempo ele passa cuidando de dois outros projetos vinícolas que mantém na Itália: um na Toscana e outro em Valpolicella.
Sua primeira incursão como produtor ocorreu em 2000, quando firmou uma parceria com o amigo Luca Fedrigo e fundou a vinícola L'Arco, em Verona. Hoje, lá são produzidas cerca de 50 mil garrafas de Valpolicella e Amarone, exportadas para Estados Unidos, Canadá, Brasil e países escandinavos. Empolgado com o sucesso da sociedade, Barichello adquiriu terras na Toscana e, em 2005, criou a vinícola Villa Triturris, que hoje engarrafa 30 mil unidades de Chianti e Brunello. Em um de seus arroubos de ousadia, plantou malbec, cepa emblemática da Argentina, em plena Toscana - e já está experimentando o corte em seus vinhos.
Recentemente, a Comissão de Enólogos do Chianti Classico, uma das entidades que regulamenta as denominações de origem dos vinhos italianos, concedeu o selo de Gran Selezione a um dos vinhos produzidos pela Villa Triturris em 2012. As regras impostas por este selo são as mesmas que regem a produção de clássicos como o Brunello de Montalcino, especificando detalhes como uvas colhidas exclusivamente na propriedade, mínimo de três anos em tonéis de carvalho e graduação alcoólica superior a 13°. A concessão deste selo reconhece a qualidade do terroir para produzir vinhos diferenciados e de grande personalidade.
— Chamei este vinho de Iohanna em homenagem a minha filhinha, Joana, e engarrafei apenas 1,2 mil unidades. Será comercializado a partir de outubro, apenas sob reserva antecipada — revela.
Além dos projetos na Itália, Barichello ainda aguarda autorização do governo argentino para iniciar as perfurações em busca de água em uma propriedade que possui na região de Mendoza. Lá, pretende fazer basicamente a mesma coisa: sonhar, construir e fazer vinhos.
Experiência singular
O vinho que nasce do improvável terroir de Porto Alegre merece uma apreciação cuidadosa, já que o aroma e o paladar são bem distintos dos demais vinhos produzidos no Rio Grande do Sul e na América do Sul. O sommelier Vinícius Santiago orienta, a pedido de Donna, a degustação do Villa Bari Gran Rosso.
• Devido à técnica de apassimento, as uvas perdem água e concentram mais açúcar e ácidos. Essa concentração dá ao Gran Rosso um teor alcoólico naturalmente alto e maior concentração de aromas e sabores.
• No nariz, apresenta notas de ameixas e uvas passas, cereja em calda e geleia de amoras.
• No paladar, é denso e potente, com bom equilíbrio entre o álcool e a acidez. Por causa dessa intensidade, é um vinho que harmoniza bem com pratos fortes, como um ragu de cordeiro, uma rabada ou até um bom caldo de mocotó.
• Para beber e apenas desfrutar do vinho, recomenda-se aeração de 30 a 45 minutos, ou seja, deixá-lo aberto ou em um decanter por este tempo antes de servir. Para degustação, sugere-se que a garrafa seja aberta na hora para que o vinho vá abrindo na taça aos poucos, mostrando seu potencial.
Além da produção em terras gaúchas (fotos à esquerda), o vinhateiro também engarrafa a bebida que fabrica em suas vinícolas da Itália, na Toscana e em Valpolicella
Na propriedade na Vila Nova, zona sul da Capital, Barichello exibe seus tesouros: ciprestes que lembram a Toscabna, araucárias que remetem à serra gaúcha e moirões de granito escorando as videiras
* Fotos: Diego Vara