* Fotos: Nauro Júnior
Ele só queria encomendar os ladrilhos hidráulicos que dariam um toque especial a mais em um de seus projetos arquitetônicos. Mas recebeu a notícia de que seu pedido seria o último a sair dos galpões da antiga fábrica, em Pelotas. Inconformado com a possibilidade de ver fechada a última testemunha de um setor que já havia sido pujante na região, o arquiteto Rudelger Leitzke, 54 anos, fez uma loucura, se endividou até os cabelos e comprou a fábrica, cujo funcionamento desconhecia quase completamente. Hoje, passado o susto e a conta no vermelho, a Fábrica de Mosaicos de Pelotas comemora um século em plena produção.
Comprar a fábrica há 22 anos foi loucura, ele admite. Mas uma loucura, digamos, com um certo fundamento. Formado pela Universidade Federal de Pelotas, Rud, como é chamado na cidade, estreitou desde os tempos da faculdade um contato com os profissionais de Buenos Aires. Via os colegas portenhos, em especial o arquiteto Eduardo Mascheroni, utilizando os ladrilhos em seus projetos e dando destaque ao material. E mais: percebia que Mascheroni comprava fábricas de ladrilhos combalidas nas cercanias da capital argentina para recuperá-las.
- Lá se vendia muito ladrilho. Mesmo as peças com defeito vendiam. E aqui as fábricas faliam - comenta Rud.
Encontrar uma explicação para essa discrepância requer uma volta no tempo. Fundadas a partir da segunda década do século 19, as fábricas de ladrilhos vieram na carona da pujança econômica de Pelotas, que ocorreu graças à indústria do charque. Com muito dinheiro circulando entre as charqueadas e o centro urbano da cidade, a Europa, especialmente Paris, era a referência de estilo e bom gosto na moda, na arte e também na arquitetura. Para não precisar importar os ladrilhos das fábricas portuguesas, foram fundadas, aos poucos, as casas de ladrilhos locais. Para se ter uma ideia, em 1914, ano em que a Fábrica de Mosaicos de Pelotas foi inaugurada, havia outras 16 empresas em funcionamento na cidade.
A invenção dos navios frigoríficos foi o primeiro golpe na indústria saladeril, já que não era mais necessário salgar a carne para transportá-la para outros mercados. Impostos, alto custo da mão de obra e a reinvenção do comércio de carne no país fizeram com que o universo do charque entrasse em colapso. O dinheiro, antes abundante, rareou na zona sul do Estado. Ao longo do século 20, as fábricas de ladrilhos de Pelotas foram sucumbindo, uma a uma, à redução do mercado. Nos anos 1990, quando Rud encomendou mais uma partida de ladrilhos da última fábrica remanescente, ficou sabendo que também esta teria o esquecimento como destino. Teria.
A decisão impulsiva de comprar a empresa moribunda teve inspiração nos hermanos, que ainda faziam dinheiro com ladrilhos na Argentina. Com eles, Rud aprendeu maneiras de modernizar os processos de fabricação, sem descaracterizar o produto, que ainda hoje é feito de forma artesanal. Mergulhou de cabeça, junto com os únicos quatro empregados que restavam, e aprendeu todas as etapas da produção.
- Eu era cabeludo na época. Todos os dias, saía com os cabelos duros de pó de cimento e mármore. Mas valeu a pena. Aprendi - afirma.
O escritório de arquitetura que mantinha em Pelotas esteve a um passo de falir, já que toda a energia de Rud ia para os ladrilhos. Ao mesmo tempo em que se esmerava para aprender mais sobre os processos dentro da fábrica, também batalhava para reerguer o negócio no mercado e vender a recente produção. E os projetos iam ficando para trás. Sorte que, entre um equilibrismo e outro, deu para levar as duas atividades, sem prejuízo de nenhuma.
Algum tempo depois da aquisição, o negócio já dava mostras de que sobreviveria. Porém, em 2005, quando já ocupava um novo prédio, mais espaçoso, uma nova ameaça à história da atividade em Pelotas veio: o antigo prédio da rua Marechal Floriano, que abrigou a fábrica desde a sua fundação e fora substituído por falta de espaço, poderia ser demolido. Um esforço conjunto entre o novo proprietário, a comunidade e a Justiça impediu que o casarão centenário fosse destruído.
Depois de recuperada e em plena produção, a fábrica de ladrilhos passou a chamar a atenção de investidores. Para expandir ainda mais o negócio, Rudelger associou-se a um grande grupo em 2007 e, hoje, detém 30% do negócio - que segue crescendo de forma sustentável e constante. Com escritórios de arquitetura em Pelotas e Porto Alegre, Rud divide-se como pode para cumprir a atribulada rotina. Em um contêiner adaptado, montou seu "cantinho" ao lado da produção, no chão da fábrica. E é no ambiente hermeticamente fechado, que o protege da poeira, que ele toca projetos e sonhos. É onde o arquiteto preserva a arte de imprimir, em cimento, areia e pó de mármore, um pouco da história de Pelotas.
Aliado da arquitetura de bom gosto
Os ladrilhos foram inventados em tempos imemoriais, na era dos antigos mosaicos bizantinos. São feitos de maneira muito simples: em uma forma de ferro se misturam tintas, areia, cimento e pó de mármore. Uma prensa hidráulica sedimenta e une esses materiais. Depois de pronta, a peça descansa na água por cerca de seis dias, para assentar as cores e garantir sua durabilidade. A partir daí, é só repousar por mais alguns dias no chão para que seque. Pronto. Está finalizado o mais clássico dos revestimentos, que nunca deixa de ser tendência, justamente por sua rusticidade e beleza.
- O ladrilho vence todas as modas na arquitetura e na decoração porque é clássico e eterno. Um ladrilho não termina nunca e combina com qualquer ambiente. Arremata à perfeição um projeto descolado e moderno e é indispensável em um estilo mais rústico e requintado. Enfim, ladrilho é sempre perfeito, é um sinal de charme e bom gosto que nunca deixará de ser belo - comenta o arquiteto.
Por serem fabricados de forma artesanal, custam mais caro do que outros tipos de revestimento. Quem opta por eles, porém, reconhece o valor de um revestimento com essas características. Além do mais, muita gente escolhe o ladrilho para uma parte específica da casa ou edificação, como mais um elemento de decoração.
- O melhor do ladrilho é que, quanto mais velho, mais especial ele fica. As marcas do tempo, como arranhões ou lascas, conferem uma personalidade toda particular, que deixa único aquele revestimento. Quanto mais velho, mais polido ele se torna, ficando cada vez mais bonito - explica Rud.
Quem vê o entusiasmo do fabricante-arquiteto jura que ele enfia ladrilhos em todo e qualquer projeto que assina. Nada disso. Segundo Rud, nem todos os clientes curtem o ladrilho - e a liberdade é a alma do negócio quando se fala em arquitetura. Mas a fábrica continua crescendo. Projetos particulares e, especialmente, restaurações são os destinos das peças fabricadas em Pelotas. A Igreja Nossa Senhora das Dores e o Mercado Público de Porto Alegre são exemplos da aplicação dos únicos ladrilhos fabricados no Rio Grande do Sul atualmente. São a prova de que a verdadeira beleza é eterna.