É só uma questão de costume. Logo você habitua.
Se é o que todos dizem, quem sou eu para duvidar. É sempre assim diante de uma novidade, a gente pensa que não vai dar conta.
Estou a sete quilômetros de casa, não é uma distância absurda, aterrissarei sã e salva — foi o que pensei ao sair da concessionária com meu carro novo, enquanto dava uma risada nervosa pelo verbo que me veio à cabeça: aterrissar. Eu não estava voando. Ao contrário, nunca dirigi tão lentamente.
É a primeira vez que tenho tantos recursos tecnológicos à disposição, e me sinto solitária como se fosse uma astronauta em missão espacial, lidando com a perda do sistema de oxigenação da aeronave.
Houston, I have a problem.
Para começar, tive que me adaptar à ausência da chave, que sempre foi o símbolo da libertação existencial. A chave de casa: metáfora para a entrada no mundo adulto. A chave do carro: conquista da autonomia. Mas quem quer saber desses simbolismos obsoletos? Agora basta apertar um botão. E eu que não reclame: se um dia vier a ter outro carro, ele será ligado através de comando de voz.
Mas não é hora de me preocupar com o futuro do futuro. Preciso antes me acostumar com este futuro do presente, um carro zero quilômetro que encerra a época em que as manobras dependiam apenas do motorista. Não consigo me empolgar com o fato de ter um botão que me dá assistência de permanência na faixa e ainda outro botão de controle de cruzeiro inteligente. Mordomia demais não fortalece o caráter.
Será que preciso mesmo de um alerta de presença no banco traseiro? Fui informada que basta ativá-lo no menu de ajustes, na tela do sistema infotainment (!!), e assim não correrei o risco de sair do carro deixando um cão ou um bebê esquecido lá dentro, em um estacionamento de shopping, sob um calor de 48 graus.
Essas tragédias acontecem, eu sei. O que esse veículo esperto não entende é que o máximo que já esqueci no banco de trás foi um brinco — e faz tempo.
Ter um monitor de visão traseira é útil, mas acho um exagero de linhas, cores, avisos e apitos, prefiro o assovio do flanelinha. Dispenso o dispositivo que faz com que o carro desligue quando parado no sinal e não sei para o que serve a quantidade de controles no volante e no painel, dando a falsa impressão de que estou pilotando um jato.
Sou uma sobrevivente de fuscas e jipes, e pelo visto mantenho o espírito anti-parafernália. Claro que, mesmo tão nostálgica, não gostaria do retorno do câmbio manual e da manivela para abrir os vidros. Reconheço que dirigir é hoje mais seguro e confortável. Mas sinto saudade do tempo em que, para ser moderno, bastava uma cabeça bem equipada, os brinquedos podiam continuar dando algum trabalho.