Muitos idolatram a infância; eu, nem tanto. Apesar de ter me divertido bastante, ficava aflita com a impossibilidade de fazer minhas próprias escolhas (sou do tempo que criança não piava). Tudo bem. Esperei pacientemente a adolescência para decidir meus primeiros passos e, uma vez instalada na idade adulta, abracei a autonomia plena. Mentira. Concessões são inevitáveis, mas passei a viver de um jeito mais próximo do meu ideal. Desde então, vivo em paz.
Mentira de novo. Não basta a liberdade de fazer escolhas para viver em paz, a não ser que se more numa caverna, com vista para um vale desabitado. Integrados à sociedade, além de fazermos escolhas, somos afetados pelas escolhas dos outros – ahá.
Você educa seus filhos de um jeito, e outra mãe faz o oposto, com resultados aparentemente mais satisfatórios. Enquanto você emenda a faculdade com uma pós-graduação, sua amiga viaja pelo mundo, e não parece muito preocupada com o futuro. E tem aquela mulher-maravilha que aos 60 anos bate recorde de revezamento de namorados, enquanto você celebra uma boda atrás da outra com seu príncipe original de fábrica, já meio enferrujado. A vida seria tão mais sossegada se não houvesse o inferno chamado “os outros”. As escolhas deles adoram provocar as nossas.
Mas não foi Sartre que me inspirou essa crônica, e sim Julia Rezende e família cinematográfica. Acaba de entrar em cartaz A Porta ao Lado, filme que mostra um casal jovem, bem adaptado à sua relação monogâmica, até que surge um par de vizinhos com costumes menos ortodoxos. Cada um na sua, recomenda o bom senso. Mas e se a grama do vizinho for, de fato, mais verde? (no filme, casualidade ou não, os novos habitantes do prédio vivem cercados de plantas). É o chamado da natureza. Um perfume insuspeito entra pela nossa janela, a gente imagina a florada e pensa: e se fosse meu esse jardim?
Julia Rezende está cada vez mais segura na direção. Entrega uma obra adulta, econômica, sofisticada, sutil. A luz é um dos pontos altos, assim como a trilha sonora e a edição precisa de Maria Rezende (ah, os Rezende). As talentosas Leticia Colin e Barbara Paz cumprem o esperado – e sempre se espera muito de mulheres sem medo.
No filme como na vida: a liberdade dos outros nos perturba. O casamento aberto dos outros nos perturba. A posição política, as ideias, os rompantes, tudo que difere da nossa conduta nos desacomoda – um pouco ou muito. Os outros são mesmo um inferno, com essa mania irritante de nos lembrar que a vida tem possibilidades inesgotáveis. Mas, sem eles, que tédio. Seria como viver numa caverna, de frente para um vale desabitado, sem jamais receber um cutucão que fizesse a gente se questionar.