Algum dia, eu vou ser um produtor de documentários reconhecido em todo o país, tenho preparo, cultura, experiência, uma boa rede de contatos, conheço a fundo esse meio. Enquanto isso não acontece, vou tocar adiante uma ação inédita na área da gastronomia, tive uma ideia genial para lançar no Nordeste, conheço as pessoas certas para me ajudar a fazer deste projeto um divisor de águas nos hábitos alimentares do povo brasileiro, é só conseguir patrocínio. Para não ficar ocioso antes disso, estou pensando em passar um mês no interior do Mato Grosso fazendo fotos de pássaros, foram catalogadas mais de 200 espécies de aves num parque ecológico, farei uma sequência espetacular de registros do gavião-real e depois posso montar uma exposição que percorrerá todo o Brasil e a América do Sul e ainda lançar um livro arrasador. Aliás, dois livros, porque um dia vou escrever sobre a história dos açorianos que fundaram Porto Alegre e sobre a contribuição deles para a religiosidade local, um assunto ainda pouco abordado, mas que dará um livro incrível, é só começar a escrever, já está tudo na minha cabeça.
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Algum dia, eu vou escrever também um poema de amor bem dilacerante e vou enviar para uma gata que vai querer casar comigo antes mesmo de chegar ao último verso, e a gente irá morar numa casinha rústica numa praia linda que ainda não tenha sido invadida por turistas e eu vou pescar e ela fará doces que venderá no armazém da vila e dormiremos em redes e terei então a vida que sonhei, só amor e simplicidade, bem longe desses abutres que sugam nossa energia. Eu poderia inclusive musicar esse poema que vou escrever pra minha futura mulher e montar uma banda, um dia vou aprender a tocar guitarra e então vou fazer um som de verdade, eclético, moderno e não esses embustes que tocam em FM e que viram jingle de refrigerante, e irei me apresentar nos clubes fechados de Berlim onde encontrarei uma plateia preparada para o vanguardismo da minha proposta. É certo que um dia vou morar na Europa, tenho o ouvido bom para idiomas e transito bem na cena artsy, poderia até fazer a curadoria de um festival de cultura latino-americana, os gringos prestigiam esse tipo de iniciativa e pode render uma grana boa, aí aproveito pra pegar um trem até Amsterdã, onde tenho uns amigos que me emprestarão o estúdio deles, eles vivem me chamando, um dia irei, é só fechar antes o contrato com a empresa de calçados para a qual apresentei um plano de vendas revolucionário, os caras são muito lerdos, não têm capacidade de avaliar o potencial de uma ideia que foge do lugar-comum, o mundo é muito careta, as pessoas são muito limitadas, mas logo depois do meu aniversário eu levanto dessa cama (jura, já são três da tarde?) e vou agilizar meu futuro. Pois é, faço 58 amanhã.