Quando Jodie Whittaker recebeu a notícia, há alguns meses, de que tinha sido escolhida para ser a protagonista da longeva série da BBC, Doctor Who, teve as mais diversas reações: chorou; prendeu a respiração; apertou o joelho de uma colega sentada ao seu lado.
- Saber que herdaria o papel do aventureiro do espaço e viajante do tempo que talvez seja um dos heróis mais importantes da ficção científica nem passava pela minha cabeça. Nem considerava que fosse algo possível - revela.
Para a atriz de 36 anos que até agora era mais conhecida pela participação no seriado britânico Broadchurch, a escalação lhe mudou a vida, como aconteceria com qualquer profissional – e foi garantia de que, quando anunciada ao público, ela se tornaria imediatamente familiar a um público de milhões de pessoas ao redor do mundo.
Em seu caso, porém, há uma diferença a mais, e inegável: nos 55 anos de história da série, durante os quais 12 atores encarnaram o personagem oficialmente, Jodie é a primeira mulher.
A atriz e seus colegas querem destacar a inclusividade da atração sem criticar o gênero pela falta histórica de representação e, ao mesmo tempo, destacar como tornaram a série mais contemporânea e diversa, não só na frente das câmeras como por trás delas, enfatizando que seus princípios fundamentais não mudaram.
Não é uma tarefa fácil para Doctor Who, que está acostumado a certo escrutínio quando substitui seu protagonista, de tantos em tantos anos. A série também é uma propriedade de destaque no entretenimento, em um campo no qual as iniciativas de diversificação geralmente são atacadas e criticadas por um grupo barulhento de fãs.
Apesar desses desafios, Jodie confessa que não poderia recusar o papel:
- Não há outro trabalho que se compare a esse. E jamais ficaria estereotipada por ele.
Em um domingo de julho, a atriz estava tomando café da manhã em um hotel daqui, depois de fazer a primeira visita como VIP à Comic-Con International na semana anterior; hoje de manhã, sonhava em voltar ao centro de convenções para ficar de olho nas celebridades que estivessem por lá, mas disse:
- Não tenho permissão. Ia precisar de pelo menos uns oito seguranças.
O processo de escolha
Criada em West Yorkshire e morando em Londres, Jodie chamou a atenção por seus papéis em filmes como Vênus (2006), ao lado de Peter O'Toole, e Ataque ao Prédio (2011), com John Boyega, antes de estourar como a mãe enlutada de uma vítima em três temporadas de Broadchurch.
Esse detalhe provou ser crucial quando Steven Moffat, showrunner do seriado desde 2009, decidiu deixá-lo, e a BBC se voltou para Chris Chibnall, criador de Broadchurch, como seu possível sucessor. Ele preferiu analisar a proposta primeiro.
- Fiz uma lista de prós e contras, tipo havia 10 coisas contra e uma a favor: é Doctor Who. No momento em que comecei a pensar que, "ah, podíamos fazer a história assim e mexer nos personagens assado, a série começou a 'falar' comigo" - revela Chibnall.
Apesar de já ter escrito o roteiro de vários episódios do seriado, Chibnall confessa que queria que sua encarnação fosse "incrivelmente emocionante, com histórias que se identificassem com o momento atual do mundo":
- Queria que fosse a temporada mais acessível, mais inclusiva e mais diversa que a série jamais teve.
Quando foi confirmado que Peter Capaldi, que se tornara o Doutor em 2013, também estava de saída, Chibnall disse que fez mais uma exigência:
- Deixei bem claro que queria uma mulher como protagonista.
Embora nomes como os de Helen Mirren, Judi Dench e Tilda Swinton já tivessem sido mencionados como prováveis candidatas ao papel, os boatos nunca renderam nada de muito concreto.
- Já estava mais que na hora de mudança para um personagem que tem a capacidade de assumir e se regenerar nas mais diversas formas - afirma Chibnall.
Ele acreditava que Jodie, umas de suas primeiras opções, tinha condições de lidar com a complexidade emocional e humor mordaz do personagem.
- A precisão com que ela faz as coisas é extraordinária, e seus instintos são muito precisos. Sem contar que é incrivelmente engraçada - destaca ele.
Apreensão antes da divulgação
Jodie, que cresceu assistindo aos filmes hiperpopulares dos anos 1980, como De Volta ao Futuro, Os Goonies e ET, o Extraterrestre, nunca se sentiu desencorajada pelo fato de praticamente não haver protagonistas mulheres em quem se espelhar.
Em relação ao Doctor Who, "a ideia de poder participar da série nunca nem me passou pela cabeça".
- Quando Chibnall pediu que pensasse em fazer um teste, fiquei imaginando se conseguiria interpretar um monstrengo, cheia de próteses e tal. Aí ele me explicou que queria que eu fosse a protagonista, mas, mesmo assim, continuei me fazendo a mesma pergunta, porque não queria nem criar expectativas - conta.
Depois de um processo no qual outros nomes femininos foram levados em consideração – que Chibnall prefere não revelar –, a BBC revelou a escolha de Jodie em um comercial exibido após a final masculina de Wimbledon, em julho de 2017.
Chibnall diz que já esperava que o fã-clube do seriado levasse um tempo para assimilar a novidade.
- Achei que levasse mais ou menos um ano, e me preparei para o pior - diz ela.
De fato, o anúncio de Jodie causou um frisson rápido e abrangente, mas não universal. Uma hashtag depreciativa, #NotMyDoctor, circulou pelo Twitter e Instagram, e a BBC recebeu reclamações de telespectadores, forçando o canal a se manifestar através de uma nota que afirmava que "o Doutor é um alienígena do planeta Gallifrey e já tinha sido dito que o Senhor do Tempo pode, sim, mudar de gênero. Whittaker está destinada a ser uma versão icônica".
Peter Davison, que assumiu o personagem no início dos anos 80, disse em aparição na Comic-Com de 2017 que se sentia "meio triste com a perda de um exemplo para os meninos"; para Colin Baker, que herdou dele o papel, o comentário foi "um verdadeiro lixo".
- Quem disse que gênero define modelo de comportamento? - disparou.
Jodie confessa que foi poupada de praticamente toda essa briga porque não está nas redes sociais. Se um crítico faz uma avaliação prematura de seu trabalho na internet, "não é um fato, é opinião, e não ligo para alguém que pense diferente de mim. Só não gostaria de ter que fazer minha última refeição ao seu lado, só isso".
Mas se a pessoa alega que ela não mereceu o papel ou que o recebeu por ser mulher, a coisa muda de figura.
- Sei que conquistei a posição por meus méritos. Não me foi dado de bandeja. E não interpreto gênero - conclui, mais seca.
Jodie disse que, se uma parte do público da série ficou decepcionada com a saída de Capaldi, seu antecessor, o fato se refletiu bem.
Descrevendo a experiência de filmar a cena na qual Capaldi se transforma nela, diz:
- Estava usando as roupas de Peter. Estava na pele dele, literalmente. Se alguém fica chateado porque ele saiu, beleza, isso significa que a série é vista, é popular. Difícil de engolir é o fato de não me aceitarem por eu ser mulher. Não dá nem para começar a discutir.
Há alguns meses, Mandip Gill esteva no País de Gales para rodar um episódio do drama médico da BBC Casualty no mesmo estúdio em que Doctor Who era produzido. E conta que quando foi procurar alguma coisa para comer, recebeu uma proibição literal de um assistente de produção.
- Estávamos andando no corredor e ele me disse que ali estava o elenco do Doctor Who e que não podia entrar. Eu só queria o refeitório! - diz ela.
Agora que já está há quase um ano na pele da assistente do Doutor, ela diz que encara o incidente com outros olhos.
- Pois é, nove meses depois lá estou eu no mesmo corredor... e abrem a porta para eu entrar - diz, orgulhosa.
Por Dave Itzkoff