SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "Eu nunca, jamais, em toda a minha história, me vi como uma mulher branca", diz a atriz Maeve Jinkings no debate que se seguiu à pré-estreia do filme "Açúcar". Maeve interpreta Bethânia Wanderley, herdeira de um engenho decadente que volta às terras da família para tentar reerguer o patrimônio e impedir que a antiga casa grande seja tomada por trabalhadores negros.
"Também não me sinto confortável para me considerar negra porque eu vivo em um país extremamente racista", continua a protagonista de "Açúcar". Maeve explica que ocupa um lugar de privilégios mesmo não sendo branca, já que não sofre os mesmos graus de racismo de pessoas de pele mais escura.
Em certa medida, a declaração da atriz corresponde ao conflito interno vivido pela personagem, que busca reafirmar privilégios brancos tentando manter uma postura de superioridade em relação aos negros e esperando deles uma posição de subserviência.
O que diferencia Maeve de Bethânia é que a personagem nega a todo o tempo suas origens e dá sinais evidentes de que não consegue lidar com elas. "É tão doloroso de se ver. [Bethânia] é levada a isso, quase empurrada, porque ela fica lá passando a chapinha no cabelo e vivendo a fantasia da casa grande, mas termina partida", diz Maeve.
Para a diretora de "Açúcar", Renata Pinheiro, a motivação para o filme veio da "urgência em tocar uma ferida" não cicatrizada da história do Brasil. "Quando filmamos [em 2014], havia um otimismo com relação à transformação que estava ocorrendo na sociedade brasileira e à ascensão a um lugar que nunca tinha sido dado a essas pessoas, que foram sempre colocadas de lado ao longo da história. Nunca foi feito um acerto de contas", diz.
A escravidão e o período que se seguiu à abolição deixaram marcas nas relações sociais e raciais do Brasil que são percebidas até hoje, de acordo com a historiadora, jornalista e professora-visitante da Universidade Federal do ABC Nirlene Nepomuceno. Ela também participou do debate realizado pela Folha de S.Paulo na quarta-feira (22), no Espaço Itaú de Cinema Frei Caneca, em São Paulo.
"Trabalhar em um engenho de açúcar significava trabalhar de 13 a 18 horas por dia. Apesar do mito da escravidão benéfica ou da escravidão menos violenta -que nunca houve, escravidão é sempre violenta- era uma relação bastante conflituosa e tensa, marcada pelos castigos físicos e pela dureza da atividade", explica a historiadora.
As relações de poder e o conflito de raças estão presentes em todo o filme. Sérgio Oliveira, que assina a codireção e a produção de "Açúcar", afirma que o filme mostra que, mesmo séculos depois, nunca houve uma harmonização entre as raças.
Ele cita a cena em que Branca Wanderley, madrinha de Bethânia vivida pela atriz Magali Biff, vai embora da fazenda levando um lustre da casa grande, em uma simbologia sobre quem é que ainda detém as estruturas e representações de poder. "Se existe alguma vilã dentro do filme, é a sociedade branca, a grande doente da história", diz.
O lustre é arrancado das mãos de Zé Neguinho, personagem vivido pelo ator Zé Maria que lidera, no filme, a associação formada pelos trabalhadores negros, o Centro Cultural Cabo Verde. Ele tenta negociar com Bethânia para adquirir as terras da família Wanderley em nome dos trabalhadores.
"Esse é o projeto dele para recuperar as vidas que foram perdidas naquele mar [de cana-de-açúcar]. Um mar que engoliu vidas e que hoje ainda luta pra engolir a história dessas vidas", disse o ator durante o debate.
Zé Neguinho instrui Alessandra, personagem vivida por Dandara de Morais, a se aproximar de Bethânia, que ambos consideram uma inimiga. Fazendo faxinas na casa, Alessandra é constantemente diminuída pela patroa, mas sua personalidade altiva é, em parte, responsável pelo processo de descoberta da identidade racial de Bethânia.
Na interpretação de Maeve, Bethânia percebe que há uma série de acontecimentos que fazem com que sua fantasia desmorone. "Mas ela não escolhe olhar. É isso que eu acho muito representativo da nossa sociedade. É uma verdade que precisa ser o tempo todo posta e reforçada".
Para Nirlene Nepomuceno, o único consenso sobre a questão da identidade racial é que ela é "fluida e cambiável". Fatores que vão além da cor da pele estão relacionados à maneira como a pessoa se identifica e como ela será lida pela sociedade.
"É uma questão de autodeclaração. Você precisa se sentir ou você precisa se identificar com essa ou aquela cultura. Por mais que eu possa dizer 'você é isso', se não há identificação, o processo não é natural", afirma a historiadora.