Enquanto a gente tenta fazer e viver de literatura, o país nos apresenta absurdo atrás de absurdo, de uma forma que a gente fica perdido – a ficção, pobrezinha, que tem a obrigação de se oferecer num sistema que pareça minimamente verdadeiro, vai parar no chinelo (por isso a produção de House of Cards, seriado da Netflix, disse que estava difícil de competir conosco).
Durante a votação da cassação da chapa Dilma–Temer, para além do brioso voto do relator Herman Pimenta, tivemos a infeliz performance do ministro Napoleão Maia que, do alto de sua vasta cabeleira branca, invocou o gesto da degola. Melhor que aquilo foi mesmo o filho do ministro Napoleão, a bordo de uma camisa polo preta, bíceps inflacionado, tentando furar a segurança para entregar ao pai aquilo que seria um envelope com fotos da netinha. Foi barrado, não sem antes esbravejar e render imagens dignas da nossa casa da Mãe Joana. A cereja do bolo daquela sessão foi o voto do ministro Gilmar Mendes.
Em contraste grotesco, na semana que passou, tivemos, aqui em Porto Alegre, a reintegração de posse do prédio da General Câmara com a Andrade Neves, aquele que abrigava a chamada Ocupação Lanceiros Negros. O prédio, antigo de mais de século, está caindo aos pedaços e oferece mais risco do que possibilidade de abrigo, mas isso não comove ninguém. Como houve previsível resistência, a retirada foi feita à base de gás lacrimogênio e spray de pimenta. Muitas das famílias não tinham para onde ir, e o desespero e o confronto imperaram. O mais incrível é que o governo não tinha um plano para assentar, nem mesmo provisoriamente, os moradores da ocupação.
Essa vocação para o surrealismo em todos os níveis é coisa que vai minando a confiança de um vivente, ainda mais um vivente que tem de dar aulas sobre ficção e tentar explicar, às vezes até para consumo próprio, o que é e o que não é factível. Dá um grande desânimo. O pior mesmo é ter que engolir em seco e admitir que, como a gente já tinha desconfiado, não é verdade que o bem sempre vence. Triste aula prática de realidade.
* A colunista escreve quinzenalmente em Zero Hora