A onda de remakes e sequências no cinema não poupa ninguém, de Hollywood ao underground de Edimburgo, na Escócia. Na continuação de Trainspotting, que estreou nesta quinta-feira no circuito, o diretor Danny Boyle tem ao menos dois trunfos para fugir das armadilhas que costumam derrubar quem se arrisca a voltar a universos já consagrados em títulos anteriores: o tempo (passaram-se 21 anos desde o primeiro filme) e, consequência desse distanciamento, um respeito quase reverente ao original, o que alivia o peso sobre os ombros do cineasta – mexer com um longa-metragem adorado por mais de uma geração de jovens adultos, Boyle parece ter ciência, é um risco.
T2 Trainspotting é um filme-homenagem moldado sobre uma pilha enorme de autorreferências, que se propõe a divertir quem já conhece as aventuras e personalidades de Mark Renton (Ewan McGregor), Simon "Sick Boy" Williamson (Jonny Lee Miller), Daniel "Spud" Murphy (Ewen Bremner) e Francis Begbie, o Franco (Robert Carlyle). Justiça seja feita: quem os fez voltar, antes, foi Irvine Welsh, autor do livro que inspirou o filme de 1996, ao escrever Porno (2002). Mas, se Welsh aceitou as licenças da primeira adaptação, incorporando ao novo livro informações adicionais do longa, Boyle reinventou a história por completo em T2.
Mark Renton, cuja trajetória novamente serve de condutora da narrativa, retorna à capital escocesa após 20 anos vivendo em Amsterdã. Conforme vamos entendendo o que houve com ele no período, acompanhamos as "atualizações" de seus ex-parceiros de pequenos golpes e drogadição – aqueles que ele sacaneou ao final do filme original. Spud não consegue se livrar da heroína, Sick Boy segue na vida de crimes, agora junto à prostituta búlgara Veronika (Anjela Nedyalkova), e o violento e sem noção Franco está preso. Mas logo vai sair da cadeia para acertar as contas com o protagonista.
Cada um deles, na verdade, se reencontrará de maneira bem marcante com Mark. Consagrado nessas duas décadas por títulos como Extermínio (2002) e Quem Quer Ser um Milionário? (2008), o às vezes maneirista Boyle usualmente tenta capturar o espectador pelo impacto de certas imagens – não falo específica e exclusivamente das sequências lisérgicas. É exatamente assim, em meio a uma tentativa de suicídio, uma perseguição tensa pelas ruas e uma briga montada à base de planos curtos e cortes rápidos, que tomamos contato com o que restou daquelas relações entre eles, aí incluídas as mágoas, o desejo de vingança e as lembranças dos bons momentos compartilhados.
Esse jogo de espelhos da memória – os personagens lembram seu passado, nós recordamos parte disso, com as músicas e as "viagens" que fizemos com eles – é o grande trunfo de T2 Trainspotting. Duas décadas depois, a maldade de Franco está ainda mais assustadora, o que não a impede de seguir sendo um alívio cômico da trama – assim como o sotaque quase indecifrável daquele submundo particular ao norte de um Reino Unido cada vez mais hostil aos estrangeiros. Aliás, em tempos de Brexit, não se pode ignorar uma certa desatualização e até simplificação das relações, incluindo os deslocamentos de Mark e a trajetória de Veronika como um todo. Paradoxalmente, quando aborda os conflitos religiosos entre católicos e protestantes na Escócia, na sequência do roubo dos cartões de crédito, Boyle nos entrega um dos momentos mais divertidos de todo o filme.
Agora, se você quer saber como se deu a atualização daquilo que mais marcou o longa original, que foi a fragmentação radical da imagem por meio do abuso dos filtros e da montagem ágil, traços da era do videoclipe e um desdobramento da estética dos anos 1980, saiba que Boyle segurou (um pouquinho) a onda. Na era do YouTube, não repetiria as escolhas anteriores. É inclusive muito interessante observar como se dá a revisita àquele universo visual, notadamente quando Mark e Sick Boy se drogam e "viajam" até uma pista de dança na qual se ouve Radio Ga Ga, do Queen: com seus planos em câmera lenta e associações felizes entre som e imagem, trata-se de uma das melhores cenas do longa.
E nem é preciso ter visto Trainspotting para ver T2. Tudo, no novo longa, está bem explicadinho, da história pregressa dos personagens à corruptela de linguagem que originou o título. Contudo, se você desconhece ou não gosta do título original, é possível que não curta o novo filme. T2 é pura nostalgia juvenil. Funciona, de fato, ao dialogar com um tipo específico de público. Acima de tudo, devido ao apelo ao que há de coletivo nessa instituição absolutamente subjetiva e pessoal de cada um chamada memória afetiva.
T2 Trainspotting
De Danny Boyle
Aventura, Reino Unido, 2017, 117min.
Estreia nesta quinta-feira nos cinemas.
Em Porto Alegre, no Espaço Itaú, no GNC Moinhos e no Guion Center.
Cotação: bom.