António Jorge da Silva, barbeiro português de 84 anos, após a morte da mulher, é abandonado por sua filha num asilo chamado "Feliz Idade". Lá, entre homens em situação idêntica, encontra João Esteves, ancião prestes a completar um século de vida. O velhote centenário, aos 20 anos, frequentava a tabacaria na qual Fernando Pessoa comprava seus jornais, cenário onde, sob a alcunha do heterônimo Álvaro de Campos, encontrou inspiração para escrever o poema Tabacaria, aquele dos versos "Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo".
Silva e Esteves são personagens de A máquina de fazer espanhóis, do português Valter Hugo Mãe, romance comovente e tristíssimo, que corrobora minha impressão sobre a terceira idade: velhice não apazigua ou enobrece ninguém. Antes, testemunha com crueldade a proximidade inexorável da morte. Frases cortantes marcam essas vidas já próximas do fim: "Nosso inimigo é o corpo, é ele que ataca o bicho que somos, é o corpo que decide o momento de começar a desligar nossos sentidos, como e quando devemos padecer dor e loucura". Um grande livro de um grande escritor.
Ao começar a leitura, ouvia Até pensei que fosse minha, disco no qual António Zambujo canta Chico Buarque, como poucos até aqui o fizeram. De arrepiar. Contando com participações de Carminho, Roberta Sá e do próprio Chico, é todo bonito. O doce sotaque da mãe-pátria passou a embalar meus dias. Música e literatura me reportaram à Lisboa, uma das cidades mais lindas do mundo. Pedindo licença ao mestre Caymmi: "Você já foi à Lisboa? Não? Então vá".
Meu involuntário "tríptico lusitano" fechou com Galveias, de José Luís Peixoto. O livro acaba de ganhar o Prêmio Oceanos. Tudo começa quando uma "coisa sem nome" atinge um vilarejo português e abre imensa cratera no chão. Cães e homens emudecem sob espanto exemplar. Merece a distinção recebida.