Bem conhecida pelo senso comum, a relação entre artistas e o vício costuma ser mais romantizada do que propriamente analisada. Dois livros recentes tentam seguir na contramão dessa tendência. Em Viagem ao Redor da Garrafa, a jornalista e escritora inglesa Olivia Laing mescla um relato de viagem nada convencional à análise do papel que o álcool teve sobre seis grandes escritores do século 20. Já em A Vida Louca da MPB, o gaúcho Ismael Caneppele apresenta 17 perfis de artistas da música nacional que mantiveram com a droga um contato tão frequente quanto o que tinham com o microfone.
Em seu livro, Olivia Laing alterna biografia, análise literária e descrições em primeira pessoa de suas viagens por cenários importantes da vida de seis escritores americanos de relação tumultuada com o copo. Estão lá os inevitáveis Ernest Hemingway e F. Scott Fitzgerald, claro, e também Tennessee Williams, John Cheever, John Berryman e Raymond Carver.
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"Meu objetivo era descobrir como cada um desses homens – e, no caminho, alguns dos muitos outros que sofreram da doença – vivenciou seu vício e refletiu sobre ele", diz a autora ao explicar a natureza de seu livro. Ou seja, não é apenas sobre a vida, mas também sobre como o alcoolismo se refletiu nas obras desses autores.
Laing oferece alguns insights interessantes. Além do álcool, a maioria desses escritores teve uma relação próxima com a água – Cheever, por exemplo, narrou a sombria desagregação da psique de um alcoólatra em um conto chamado O Nadador. Foram, também, personalidades em deslocamento constante: Hemingway e Fitzgerald tiveram seus períodos de giros europeus; Carver e Cheever passaram anos peregrinando por universidades do Interior.
Viagem ao Redor da Garrafa tem o mérito de não moralizar as escolhas de seus personagens. Sim, o vício no álcool, como costuma acontecer, destruiu gradativamente as relações sociais e familiares de cada um deles, e no final já comprometia sua capacidade de trabalho. Ao mesmo tempo, Laing sabe ver as sutis correlações entre a personalidade de seus personagens, vulnerável algumas vezes, desesperada em outros momentos, com a obra que o vício comprometeu. Não é que poderiam ter escrito mais e por mais tempo se não fosse o álcool – o que talvez seja verdade – mas sim que não teriam escrito as obras que conhecemos sem aquela parcela de sensibilidade que de algum modo também os direcionava ao álcool. É de lamentar, contudo, que Laing, que admite ter crescido em um lar em que a bebida corria solta, tenha evitado as escritoras, como Patricia Highsmith ou Dorothy Parker, por acreditar que "sua história muito se aproximava de minha casa". Elas talvez permitissem uma abordagem diversa e mais complexa, dado que o ensaio se concentra em autores que Laing já sabia terem perfil semelhante.
Já A Vida Louca da MPB retoma as relações com os excessos de 17 músicos e compositores brasileiros, dos de maior projeção, como Carmen Miranda, Vinicius de Moraes e Tim Maia, a figuras de popularidade mais restrita, como Sergio Sampaio e Julio Barroso. O foco aqui é a vida dos que declinaram pelo abuso de substâncias variadas, não apenas o álcool.
Em uma MPB que até recentemente tinha algumas de suas principais figuras na batalha para proibir biografias não autorizadas, não é de admirar que a vertente "vida louca" de nossos artistas seja pouco abordada. Um dos autores a tratar mais honestamente a relação entre a droga e a música no Brasil foi o insider Nelson Motta, em suas memórias Noites Tropicais, e não por acaso Motta também apadrinha este livro de Caneppele, sendo o autor da ideia da obra e da lista de 17 personagens.
A DROGA COMO ESTILO DE VIDA
O livro de Caneppele se concentra não tanto no vício em si, mas nas necessidades que os despertaram. Alguns abusaram para continuar fazendo aquilo que o público esperava deles, como Carmen Miranda entupida de benzedrina em uma maratona de shows. Outros, buscaram anestesiar-se para conciliar temperamento tímido e sucesso, como Sergio Sampaio, que praticamente fugiu do lançamento de um álbum para se afogar em álcool. Em outros, a droga é a expressão de um estilo de vida anárquico, como Julio Barroso, consumidor onívoro de drogas e sexo.
É um livro escrito com visível paixão pelos personagens. Ao mesmo tempo, é um trabalho que se sai melhor quando lança seu olhar sobre autores menos conhecidos, já que os perfis de Carmen Miranda e Tim Maia, por exemplo, soam mais como uma agradável introdução a tópicos abordados com mais detalhamento nas biografias escritas por Ruy Castro e Nelson Motta, respectivamente.
VIAGEM AO REDOR DA GARRAFA
De Olivia Laing Rocco, 320 páginas, R$ 44,50. Tradução de Hugo Langone.
A VIDA LOUCA DA MPB
De Ismael Canappele Leya, 272 páginas, R$ 49,90.
PRATELEIRA
BONITA AVENUE
O romance de estreia do holandês Peter Buwalda se tornou um best-seller e arrematou prêmios em seu país ao abordar o tema da pornografia na internet. Na trama, um jovial reitor universitário começa a consumir compulsivamente vídeos eróticos, mas vê sua família se desestruturar quando desconfia que sua atriz pornô favorita pode ser sua enteada. (Tradução de Cassio de Arantes Leite. Alfaguara, 536 páginas, R$ 64,90)
O ÁRABE DO FUTURO 2
Segundo volume da trilogia autobiográfica em quadrinhos de Riad Sattouf, ex-colaborador da revista Charlie Hebdo, trata de seus primeiros – e duros – anos escolares na Síria, mas sem abrir mão do humor. Nascido em Paris, Sattouf muda com a família ainda na infância para o país de origem do pai, um idealista adepto do pan-arabismo. (Tradução de Carolina Salvaciti. Intrínseca, 160 páginas, R$ 24,90)
METAMORFOSE DOS OLHOS DE FÍLIS EM ASTROS
Filocalia, novo selo de editora É Realizações, chega ao mercado com edições cuidadosas de textos clássicos sobre filosofia, literatura e religião. Um dos destaques é este volume bilíngue, inédito em português, do poema do francês Germain Habert, publicado em 1639. A obra apresenta o destino fatal de Fílis, jovem que desperta a paixão e inveja da divindade Sol. (Tradução de Lawrence Flores. Filocalia, 96 páginas, R$ 39,90)