Depois da morte de Elis, passei bastante tempo sem conseguir ouvir seus discos. Inconformado por ter morrido tão cedo, rejeitei os discos para não me avivarem a memória dela. Éramos amigos e eu a admirava muito como pessoa e artista.
Neste ano, ao ler a detalhadíssima biografia Elis Regina - Nada Será como Antes, de Julio Maria, voltei a sentir um pouco daquele desconforto. O texto é um olhar de fora para dentro, racional, objetivo, como aliás se espera das boas biografias. Mas não teve jeito de eu percorrer o livro como um leitor comum, me sentia parte daquela história - ao contrário de Julio Maria, que tinha 11 anos quando Elis morreu. Ouvi Elis do Clube do Guri até o fim. Como fã, a vi cantando Arrastão na TV, apresentando O Fino da Bossa, liderando a MPB. Como jornalista, a entrevistei várias vezes para Zero Hora.
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Agora, lendo Elis - Uma Biografia Musical, que Arthur de Faria lança nesta terça-feira na Livraria Cultura, o sentimento é outro. Arthur também não viveu aquele tempo, mas, em seus ofícios de jornalista, músico e pesquisador, aprendeu os atalhos para investigar como Elis saiu de Porto Alegre rumo ao Rio, em 1964, aos 19 anos, já com pelo menos metade do caminho andado para conquistar o país e se tornar a maior cantora brasileira de todos os tempos.
Ele foca a formação profissional de Elis na Rádio Gaúcha e em conjuntos melódicos como o Flamboyant, para justificar por que fez sucesso quase instantâneo entre os músicos cariocas do Beco das Garrafas. Ela era um deles, tinha cartas na manga, personalidade forte e intuição rara. Daí que já no início me identifiquei com o tom local da narrativa de Arthur. E não se trata de bairrismo.
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Devido ao centralismo cultural, nos acostumamos a "saborear" histórias com as visões de biógrafos como Ruy Castro e Nelson Motta. Arthur não deixa de apreciá-las, pois, afinal de contas, a carreira de Elis se deu no Rio e em São Paulo. Mas o modo porto-alegrense de ver as coisas, e desconfiar dos "folclores" cariocas e paulistas, acrescido de seu humor peculiar, é o que de fato diferencia sua biografia das outras - a já citada de Julio Maria e Furacão Elis, de Regina Echeverria, de 1985. (Antes, em 1984, saíra a primeira, de Zeca Kiechaloski, em um pequeno volume de cem páginas da coleção Esses Gaúchos, lançada pela Editora Tchê/RBS).
Arthur não apenas contesta e/ou corrige informações dadas como verdadeiras pela imprensa, como flagra as constantes contradições em entrevistas de Elis. Contradições? Era com ela.
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Com prefácio da jornalista paulista Maria Luiza Kfouri (que em Furacão Elis escreveu a cronologia da vida da cantora), o livro de Arthur é, mais que uma biografia tradicional, uma grande reportagem. A linha mestra musical não exclui informações de intimidade como brigas conjugais, mas não investe em detalhes sórdidos tipo a autópsia do cadáver.
Foram dois maridos, três filhos e vários namorados, em meio à ditadura, aos esquemas das gravadoras, à paixão pelo palco, ao grande sucesso. Ela sempre se impôs. Não fosse por insistência dela, por exemplo, não teríamos o clássico absoluto Elis & Tom. De Ronaldo Bôscoli, o primeiro marido: "Não conheci ninguém mais inteligente que ela". De César Camargo Mariano, o segundo: "Naquela época, todos os compositores brasileiros - todos, todos, literalmente todos - compunham para ela".
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Arthur é um legítimo fazedor, acompanho sua trilha deste os 14 anos. Ele me homenageia no livro. Espero que isso não diminua minha apreciação. Até porque o texto sobre Elis integra um beeem maior sobre a história da música do RS, a mais completa jamais feita e à espera de publicação.
SERVIÇO
ELIS - UMA BIOGRAFIA MUSICAL, de Arthur de Faria (Arquipélago Editorial, 272 páginas,R$ 45).
- Lançamento nesta terça-feira, às 19h, na Livraria Cultura do Bourbon Country, com as participações de Maria Luiza Kfouri e Juarez Fonseca.
- Bate-papo com o autor na quarta, às 19h, no Centro Municipal de Cultura (Erico Verissimo,307).