Anna Muylaert começou a pensar no projeto que viria a ser seu mais recente longa-metragem, Que Horas Ela Volta?, há 20 anos. Ao longo desse período de gestação, o filme que estreia nesta quinta-feira nos cinemas absorveu em sua trama o processo político que buscou diminuir a desigualdade social no Brasil na última década.
Veja o comentário de Roger Lerina sobre o filme:
Conta a história de Val (Regina Casé), mulher que deixou Pernambuco há mais de 10 anos para trabalhar como babá e, depois, empregada doméstica de uma família rica de São Paulo. A filha que ela deixou para trás, Jéssica (Camila Márdila) vem ao seu encontro porque vai prestar vestibular. A convivência é turbulenta pelas feridas afetivas não cicatrizadas e também pelo fato da garota, com seu comportamento crítico à relação de poder estabelecida na mansão, bater de frente com a patroa da mãe, Bárbara (Karine Telles).
Que Horas Ela Volta? já recebeu prêmios nos festivais de Sundance e Berlim e está cotado para representar o Brasil na disputa por uma indicação ao Oscar de filme estrangeiro - o anúncio do vencedor será feito pelo Ministério da Cultura no dia 10 de setembro.
Diretora de longas premiados como Durval Discos (2002) e É Proibido Fumar (2009), Anna falou a Zero Hora sobre a realização de Que Horas Ela Volta? e as discussões que o filme lança.
Que Horas Ela Volta? registra com precisão uma relação social em transição no Brasil. Temos a inculta empregada "quase da família" que tem seu espaço de interação físico e afetivo delimitado dentro da casa e cumpre esse papel atávico por necessidade e com resignação. E temos a letrada filha dessa empregada, uma garota que aspira a ascensão social pelo estudo para driblar o destino que, em uma realidade brasileira de anos atrás, poderia ser o mesmo de sua mãe. Qual foi seu ponto de partida na elaboração do roteiro e quando ele teve início?
Eu comecei a escrever o roteiro em 1995, quando me tornei mãe. Senti um chamado muito grande para a maternidade e, ao mesmo tempo, percebi que esse trabalho era desvalorizado no Brasil e, muitas vezes, terceirizado por babás que tinham baixos salários. Então eu escolhi essa figura da babá porque acho que ela encerra em si muitos paradoxos na nossa cultura, desde as injustiças sociais até a questão da educação, principalmente da educação afetiva. Mas o projeto teve uma gestação lenta, eu fui amadurecendo enquanto diretora e roteirista e o país foi mudando. A ultima versão que foi filmada foi escrita seis meses antes da filmagem. Parei para atualizar o projeto e absorver as mudanças recentes do país. Discordo de que Jéssica pense em uma ascensão social. Ela quer ter direito à cidadania, que é uma coisa mais complexa e importante.
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Mesmo sem a presença explícita da discussão política em cena, seu filme é político, pois destaca, e marcando posicionamento, a relação de poder e submissão que tem pautado a política social do Brasil nos últimos anos, sobretudo diante da chamada "ascensão da classe C". Você concorda?
Sim, trata-se de um filme político. Mas ele não é panfletário em momento algum, porque, como obra de arte, pretende simplesmente tornar visível o invisível e abrir para o debate e, quem sabe, para a reciclagem de ideias. Mas além de político, trata-se também de um filme de amor, que aponta para um final de esperança e transformação positiva.
Seu filme ilumina com uma contundente sutileza o desconforto que uma parcela das classes mais abastadas tem mostrado com o processo que busca diminuir a desigualdade social no Brasil: como, por exemplo, não aceitar o mais pobre disputando vaga na universidade com o filho. Como você trabalhou o roteiro para que a abordagem desse tema não se tornasse caricata ou panfletária?
Durante muitos anos, no inicio desse roteiro, a Jéssica vinha para São Paulo como um clichê da filha da empregada, fragilizada, sem educação. Vinha para tentar ser cabeleireira, mas nem isso conseguia e virava babá no final. Quando sentei para a última reescritura, estava a fim de dar um novo rumo para esta personagem e sua mão. Queria um final com mais esperança, queria quebrar com essa maldição. Mas não sabia como e me debati por semanas até que uma noite me veio a ideia: Jessica já chega como cidadã, ela vem prestar vestibular para a FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP). A própria história já dizia tudo. Essa inversão era forte o suficiente porque lida com os preconceitos de quem assiste ou com as esperanças - depende de onde você esta situado em relação à porta da cozinha.
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A empregada doméstica costuma ser um elemento de demonstração de status no Brasil. Um caso emblemático é o de pais que circulam com seus filhos por espaços públicos acompanhados pela babá vestida de uniforme branco. Como o espectador estrangeiro percebe essa relação senhor/serviçal, uma vez que nos países desenvolvidos essa relação, quando existe, não costuma ser tão explícita como aqui?
Eles ficam simplesmente chocados. Perguntam se isto é real. Quando digo que sim, que isso existe aqui, eles comentam que isso havia na época do bisavô deles. Mas, mesmo assim, reconhecem esse tipo de relação, já que relações de poder, divisões sociais, existem em todos os lugares, até mesmo nos aviões. Aqui você pode sentar, aqui você não pode. E a partir daí o filme ganha uma dimensão mais ampla, discute-se a cidadania em um âmbito mais geral do que apenas a empregada doméstica e as regras escravagistas que temos aqui.
Como foi o trabalho de preparação e interação do elenco? Todos perecem precisos em seus registros. Regina não encarna a típica mãe-coragem que costuma carregar no melodrama, Karine não é a caricatura da perua megera, e Camila não encarna a rebelde inconsequente. Todos, incluindo os personagens do Lourenço e do Michel, têm sutilezas e camadas além da primeira aparência. Os atores ajudaram em que medida para encontrar o tom correto de seus personagens?
Olha, tenho uma busca na minha direção, que é evitar clichês e tentar sempre dar uma saída que amplie os personagens. Em primeiro lugar, só escolho atores-autores. Atores que tenham a capacidade de criar junto comigo, de questionar e de trazer o que têm de melhor. Então, todos sabiam que eu não estava afim de demonizar ninguém, nem mesmo de julgar. Estava tentando criar personagens verossímeis e também com profundidade. Mesmo a dona Bárbara, que foi a personagem mais difícil de evitar a vilanização, porque ela de fato faz ações violentas. Dempre pedia a Karine que fizesse as coisas com educação, com gentileza, já que acho que a personagem dela não é culpada pela situação que vivemos. Nossa sociedade como um todo ainda está legislada por leis que remontam a nossa colonização.
Como você está vendo esta especulação de publicações estrangeiras que estão colocando Que Horas Ela Volta? na lista de possíveis concorrentes ao Oscar de filme estrangeiro?
Eu as entendo como especulações. Por terem surgido na semana do lançamento do filme no Brasil, isso foi muito positivo para nossa estreia, mas não levo muito a sério.
Que Horas Ela Volta? é um filme com muito a dizer sobre o Brasil e com potencial de diálogo com diferentes públicos. Qual é sua expectativa para que ele seja descoberto e valorizado por público e exibidores?
Olha, sou gato escaldado, tenho desejos, mas não muita expectativa. Tenho uma enorme vontade que o brasileiro veja o filme, tanto os que nasceram na sala quanto os que nasceram na cozinha, especialmente esses últimos. Mas nosso filme não tem tanta verba de divulgação e vai estrear em 90 salas, um lançamento que não é pequeno, mas também não é grande. A Globo Filmes está sendo muito parceira nessa divulgação, e espero que ajude a fazer com que o filme seja visto por um maior número de pessoas.
QUE HORAS ELA VOLTA?
De Anna Muylaert. Drama, Brasil, 2015, 112min.
Estreia quinta-feira no circuito. Sessão de lançamento nesta quarta, às 19h30min, no CineBancários, com entrada gratuita e presença das atrizes Camila Márdila e Karine Telles. Entrada gratuita, mediante retirada de senha a partir das 19h.
Cotação: cinco estrelas de cinco
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